Aldo Fornazieri: “Por que a desigualdade aumenta”

30/10/2019 | Política

Os capitalistas e seus representantes políticos, hoje, não têm a quem temer. Instrumentalizaram as democracias para atender os seus interesses.

Publicado no Jornal GGN, no dia 30 de outubro de 2019 | Por Aldo Fornazieri*

Estudos de pesquisadores e dados de instituições multilaterais a exemplo do Banco Mundial são unânimes em apontar o aumento da desigualdade no mundo. Com ela aumenta também a fome. Algumas projeções indicam que esta tendência se projeta para as próximas décadas configurando uma possível situação crítica por volta de 2050 se a tendência não for revertida. O alastramento dos desastres ambientais é um fator que potencializa o advento de crises e conflitos sociais e políticos por conta da falta de recursos necessários a uma vida digna. A revolução tecnológica em curso, com impactos no mundo do trabalho, também é um fator que concentra riquezas. Hoje, por exemplo, as cinco maiores empresas do mundo são empresas de tecnologia.

O Brasil ocupa uma posição indigna no ranking da desigualdade. Somos um dos países mais desiguais do mundo. A situação vem se mostrando cada vez mais crítica. Dados divulgados recentemente pelo IBGE mostram que a renda dos mais ricos cresce e a dos mais pobres cai. Nada menos do que a metade da população brasileira vive com até R$ 413,00 por mês. Trata-se de um dado assustador e inaceitável. Mais do que isto: levantamento de Pedro Fernando Nery mostra que o Brasil tem uma Uganda dentro dele. A Uganda é um dos países mais pobres da África e do mundo. De acordo com o levantamento, os 42 milhões de brasileiros mais pobres têm uma renda média igual à população da Uganda. Calcula-se que a Uganda tenha cerca de 44 milhões de pessoas, a maioria esmagadora de miseráveis.

Certamente existem vários fatores que contribuem para a concentração de riquezas e aumento das desigualdades no mundo, dentre eles a lógica concentradora do capitalismo e os efeitos concentradores das revoluções tecnológicas. Mas ocorre que os conflitos distributivos sempre são decididos, em última instância, na esfera política, pela via do conflito político. A questão de fundo é a questão do poder. Este problema é deliberadamente escamoteado pelos pesquisadores e técnicos aliados ao sistema do capitalismo. E ele é ignorado pelas esquerdas e pelos movimentos sociais.

O fato é que hoje existe um claro desequilíbrio político em favor do capital. Este desequilíbrio tem várias razões. O fim da luta sistêmica é uma das razões principais. Isto quer dizer: hoje existe um sistema único. O capitalismo não tem mais um inimigo sistêmico como era o sistema comunista ou soviético. A luta sistêmica era um fator que favorecia um equilíbrio político e distributivo maior entre o capital e o trabalho no interior do capitalismo.

Os capitalistas e seus representantes políticos, hoje, não têm a quem temer. Instrumentalizaram as democracias para atender os seus interesses. As forças de centro-esquerda e esquerda sequer lhes opõem uma luta pelo socialismo. Essas forças fazem parte do sistema. Os partidos de centro-esquerda e esquerda também são partidos da ordem. As soluções que propõem para os problemas se situam no marco do capitalismo predatório.

As revoluções tecnológicas proporcionaram também uma transformação radical no mundo da produção, mudando as relações entre o capital e o trabalho. Na era da sociedade industrial os sindicatos fabris fortes, interligados a partidos trabalhistas e socialistas fortes, eram capazes de estabelecer certas condições de equilíbrio nas negociações com o capital, seja na esfera sindical, seja na esfera dos parlamentos e dos acordos que implicavam a participação do governo. Assim, direitos trabalhistas e sociais eram conquistados e assegurados, até porque havia um certo consenso entre a centro-direita e a centro-esquerda no sentido de garantir determinados padrões de Estado de bem estar social. O neoliberalismo e a extrema-direita romperam esse consenso.

As revoluções tecnológicas, além de reduzirem drasticamente o número de trabalhadores fabris, deram mobilidade ao capital físico, facilitando o seu deslocamento dentro de um mesmo país, de um país para outro país e até mesmo deslocamento intercontinental. Isso conferiu enorme poder de barganha ao capital, tanto frente aos sindicatos, quanto frente ao poder público. Os sindicatos perderam força e as greves perderam relevância. O poder público se esmera em conceder benefícios e isenções fiscais ao capital. Nem os sindicatos e nem os partidos de esquerda foram capazes de elaborar estratégias que os  retirassem da defensiva história e os recolocassem no jogo de um contrapoder em relação ao capital e aos termos do conflito distributivo por ele ditados. Hoje, a rigor, o capital e suas representações políticas não precisam mais exercer a hegemonia nos termos de concessões aos debaixo para conseguir dirigir, nos termos colocados por Gramsci. O capital exerce um hegemonismo impositivo. Ele exerce uma autocracia disfarçada de democracia.

Os altos salários das burocracias e dos dirigentes sindicais, as benesses, privilégios e altos salários dos dirigentes e dos representantes políticos dos partidos de centro-esquerda e esquerda geram uma esquerda das camisas engomadas, dos punhos de renda, das pulseiras e adornos de ouro, da boa vida, integrada ao sistema capitalista. As populações periféricas foram sendo abandonadas. Nos governos, as esquerdas lhes concedem programas compensatórios, as migalhas do capital.

As políticas da moralidade, as lutas e bandeiras dos novos movimentos sociais – mulheres, etnias, LGBTs, movimentos ecológicos etc. – também não estão sendo capazes de gerar uma perspectiva transcendente ao capitalismo predatório. Promovem lutas, demandas e reivindicações que se situam nos marcos desse mesmo capitalismo. Alguns analistas da globalização chamam a atenção para o fato de que muitas dessas causas e lutas ligadas à política da moralidade são financiadas por fundações do grande capital, visando conferir uma face mais humanizada ao capitalismo e uma aparência de uma luta contra-hegemônica.

O capitalismo e seus representantes políticos só cederão se existirem forças políticas organizadas que sejam capazes de representar ameaças e impor temor ao sistema de poder estabelecido. Os programas de receituários compensatórios e de reformismos fracos dos partidos de esquerda não impõem este temor. O que impõe algum tipo de temor hoje são as rebeliões das multidões, pois não há forças militares capazes de contê-las. Ocorre que as rebeliões das multidões são quase espontâneas. Não têm direção e sentido e não tem organizações que expressem força política e social própria. Expressam gritos desesperados contra as desigualdades, as injustiças e a falta de perspectivas. Em que pese o calor e a excitação que provocam, tristemente, tendem a se esvair com poucas conquistas, subjugadas pelo mal estar do nosso tempo.

*Aldo Fornazieri é professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP)