André Lara Resende: 'Crise exige superar equívocos sobre emissão de moeda e dívida pública'

21/05/2020 | Economia

Publicado na Folha de São Paulo, no dia 16 de maio de 2020 - Por André Lara Resende*

Diante do drama da pandemia, nem os mais renitentes defensores do equilíbrio fiscal ainda sustentam que o Estado não pode aprovar despesas sem fontes tributárias. Qualquer pessoa de bom senso concorda que o Estado deve gastar o que for necessário na saúde e na ajuda assistencial aos que estão sem emprego, sem renda e sem alternativas.

Com a arrecadação em queda, o momento não permite o aumento dos impostos, o que agravaria a dramática recessão que enfrentamos. As despesas emergenciais irão inevitavelmente aumentar o déficit das contas públicas.

Só restam duas alternativas: a emissão de moeda ou o aumento da dívida. A decisão de como financiar o déficit, substantivo e inevitável, tem provocado controvérsia. Pode-se emitir moeda? Existe um limite para o aumento da dívida?

Comecemos pela questão da emissão monetária. No mundo contemporâneo, moeda e dívida pública não são tão diferentes como se pretende. São ambas passivos do setor público. Tanto a moeda como um título do Tesouro são dívidas do Estado.

No passado, a moeda metálica tinha um valor intrínseco. Depois, passou a ser um certificado de dívida pública, que poderia ser convertido numa mercadoria de valor intrínseco, o ouro. Hoje, é apenas mais um certificado de dívida do Estado que não tem lastro metálico, é puramente fiduciário. Quase toda moeda contemporânea, como também a dívida pública, é apenas um registro contábil eletrônico.

Qual, então, a diferença entre moeda e dívida pública? A moeda não paga juros e é o ativo líquido por definição, isto é, sempre aceito pelo seu valor de face.

No passado, a dívida não monetária era relativamente ilíquida. O preço de um título de dívida poderia sofrer grandes deságios, caso houvesse pressa para vendê-lo, pois o mercado era desorganizado e pouco líquido. A maioria dos compradores de dívida eram investidores que pretendiam levar os títulos até o resgate.

Hoje, com os mercados financeiros hiperdesenvolvidos, a dívida pública tem praticamente a mesma liquidez da moeda. Com as taxas de juros básicas, que balizam os juros da dívida, próximas de zero ou até mesmo negativas em grande parte do mundo, a distinção entre moeda e dívida torna-se praticamente irrelevante. São ambas dívidas públicas de alta liquidez.

A moeda contemporânea, sem valor intrínseco, é apenas um certificado de dívida, sem prazo de vencimento, ou seja, uma perpetuidade, que não paga juros, mas essencialmente um certificado de dívida pública. A principal diferença é institucional: a moeda é um passivo do Banco Central, por isso não é computada como dívida pública. Esta é a razão da polêmica em torno da monetização dos déficits públicos.

Quando o Estado gasta, necessária e inevitavelmente, aumenta o seu passivo consolidado, mas se opta por financiar seus gastos com emissão de moeda, ou seja, com aumento do passivo monetário do Banco Central, não há aumento da dívida pública. Substantivamente, não há qualquer diferença, o passivo consolidado do Estado irá aumentar, mas o aumento não será expresso na dívida pública.

Com tanta discussão e confusão em torno do assunto, não tenho a intenção de massacrar o leitor com mais uma exposição excessivamente técnica. Peço apenas mais um pouco de paciência, para expor um ponto de alta relevância e malcompreendido.

Tanto o Estado quando o sistema bancário criam moeda. A moeda é um passivo do Estado, mas o sistema bancário tem permissão para criar um passivo que, em última instância, é do Estado. Os bancos que têm conta no Banco Central podem criar moeda e obrigá-lo a sancionar essa expansão.

Para evitar que a taxa juros no mercado de reservas bancárias, principal instrumento de política monetária, se desvie da taxa fixada, o Banco Central é obrigado a sancionar a expansão da moeda. Ao dar crédito os bancos emitem moeda.

Essa é a razão pela qual não são meros intermediários, que canalizam a poupança para o investimento, mas agentes que criam poder aquisitivo. Assim como o Banco Central, o sistema bancário cria poder aquisitivo.

Enquanto a moeda criada pelo sistema bancário financia primordialmente gastos privados, a moeda criada pelo Banco Central poderia financiar os gastos públicos, mas não é o que ocorre. A proibição de que o Banco Central financie o Tesouro obriga o Estado a emitir dívida sempre que gasta.

Trata-se de uma restrição legal, cuja justificativa é impedir a “monetização” do déficit público. Ocorre que a dívida subscrita pelo sistema financeiro obriga o Banco Central a emitir as mesmas reservas que teria emitido para financiar diretamente o Tesouro.

O aumento de poder aquisitivo na economia é exatamente o mesmo. A diferença é que a “emissão” de moeda será feita pela expansão do crédito bancário, forçando os bancos a se refinanciar com o Banco Central.

Essa é a razão pela qual aproximadamente 40% da dívida pública é hoje financiada pelo Banco Central por meio das chamadas “operações compromissadas”, que nada mais são do que emissão de reservas, base monetária, para o sistema bancário.

Em vez de o Tesouro ser forçado a emitir dívida, vendê-la para o sistema bancário, que por sua vez vai se financiar no Banco Central, o próprio Banco Central poderia financiar o Tesouro, com reservas remuneradas à taxa básica, sem necessidade de emissão de dívida.

O sistema de reservas remuneradas já existe e é utilizado, entre outros bancos centrais, pelo Fed americano. Se as “compromissadas” fossem transformadas em depósitos remunerados no Banco Central, a dívida pública se reduziria a 60% do que é hoje, ou seja, cairia de 75% para 45% do PIB.

Aqui está a chave de toda a celeuma em torno da emissão de moeda para financiamento de gastos públicos, da chamada monetização do déficit.

Durante décadas, sobretudo sob a batuta de Milton Friedman e seus discípulos da Universidade de Chicago, sustentou-se que os bancos centrais não poderiam emitir mais base monetária do que o crescimento nominal da renda, sob pena de provocar inflação.

Com as suas bases conceituais questionadas desde Knut Wicksell, há mais de um século, a tese de que a emissão de moeda pelo Banco Central provoca necessariamente inflação foi completamente desmoralizada pelo experimento do Quantitative Easing. O QE, implementado pelos bancos centrais dos países atingidos pela crise financeira de 2008, nada mais é do que expansão de base monetária para que o Banco Central possa socorrer o sistema financeiro.

Os bancos centrais chegaram a multiplicar seus passivos por mais de dez vezes, isto é, expandiram a base monetária em mais de 1.000%, sem que houvesse qualquer sinal de inflação. Ao contrário, todos os países nos quais o QE foi implementado continuaram a beirar perigosamente a deflação.

Recapitulemos. Moeda é emitida tanto pelo Banco Central como pelo sistema bancário. A emissão de moeda pelo Banco Central, por determinação legal, não pode financiar o Tesouro, mas é permitida para expandir as reservas dos bancos, que então expandem a moeda e financiam o Tesouro.

No final, a expansão da moeda é a mesma, mas há uma correspondente expansão da dívida, e é o sistema bancário que decide a taxa exigida para financiar a dívida. Esqueçamos que o sistema bancário lucra, e muito, nessa desnecessária intermediação, e vejamos como esse arranjo institucional serve ao propósito de restringir os gastos do Estado.

Como a expansão da dívida pública foi transformada no principal indicador de desequilíbrio fiscal, a proibição de que o Banco Central financie diretamente o Tesouro, ao obrigar a emissão de dívida, reforça o coro dos alarmistas: a relação dívida/PIB vai superar o limite mágico, a dívida será impagável e a economia caminhará para o abismo.