Antônio Martins: “Por que fracassou o mega-leilão do Pré-Sal”

06/11/2019 | Política

Petroleiras globais fugiram do risco Bolsonaro: abriram mão de enorme ganho financeiro, calculando que operação pode ser anulada no futuro. Revés revela: nem maiores beneficiários do projeto neoliberal estão certos de sua estabilidade

Publicado Poucas Palavras, no dia 6 de novembro de 2019 | Por Antônio Martins*

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Por William Gropper
 

Para o governo Bolsonaro, foi um fracasso acachapante. Apenas as estatais chinesas CNODC e CNOOC, entre todas as grandes petroleiras estrangeiras, participaram, hoje (6/11), no Rio de Janeiro, do leilão de cerca de 9,3 bilhões de barris de petróleo localizados em quatro campos do chamado Pré-Sal, no litoral da capital carioca. Péssimo para o governo, ótimo para o Brasil. O resultado livra o país de um imenso prejuízo – econômico e geopolítico. E traz, ao mesmo tempo, uma revelação de importância estratégica: o governo Bolsonaro tornou-se tão abertamente destrutivo, para o Brasil, que os próprios beneficiários da devastação desconfiam que ela será insustentável. Uma característica especial do leilão aguçou a sensação de risco destes agentes.

Basta uma rápida vista dos números para enxergar a rapina que se tramou. Há, nos campos leiloados, em estatísticas conservadoras, 9,3 bilhões de barris1. À cotação média de 2019 (US$ 65, ou R$ 260 por barril), valem R$ 2,418 trilhões. Como a receita líquida das petroleiras que obtêm a concessão é estimulada, no caso, em 27,6% (percentual recorde, em todos os leilões semelhantes realizados nos últimos anos), estas corporações transnacionais poderiam obter R$ 667,36 bilhões, em cerca de trinta anos de extração.

 

O governo Bolsonaro fixou o preço mínimo em R$ 106 bilhões. O ganho era extraordinário, portanto. Mas pesou, para o fracasso, um detalhe: o chamado “bônus de assinatura”, a ser pago antes de começar a extração. Ao contrário do que ocorre na maior parte das ofertas de mesmo tipo, o governo brasileiro estabeleceu que os compradores deveriam pagar muito neste primeiro momento e quase nada durante as décadas de operação. Por que motivos o fez? Para gerar uma folga no orçamento, às vésperas de ano eleitoral? Por estar confiante em seu próprio prestígio junto ao mundo dos meganegócios globais? Não se sabe. O certo é que, ao fazê-lo, Guedes-Bolsonaro montaram uma operação de risco, em que a incógnita principal, a ser avaliada pelos compradores, era a própria capacidade da dupla no poder em manter o pactuado.

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Em roxo, a área leiloada, com destaque para campo de Búzios, considerado um dos mais abundantes do mundo. Oferta era tão generosa que petroleiras internacionais temeram.

Faça os cálculos. Ao todo, oferecia-se, em petróleo, o equivalente a R$ 667,36 bilhões. Mas considerando-se uma exploração em trinta anos, a receita média é de R$ 22,24 bilhões anuais. O leilão continuava muito atraente. Numa conta simplificada, seriam necessários apenas 4,7 anos de extração para pagar o valor inicial investido no “bônus de assinatura”. A partir de então, apenas ganhos. Mas e se, antes destes 4,7 anos, algo perturbar o lucrativo acerto? E se a sociedade brasileira julgar, por exemplo, que ele é lesivo aos interesses nacionais e deve ser anulado? E se houver, à frente do Estado, forças que efetivem este cancelamento?

Ao que tudo indica, este temor cresceu nos últimos dias e provocou a desistência das grandes petroleiras. O negócio era tão atrativo quanto arriscado. Um conto do vigário, uma pechincha perigosa e comprometedora. Num tempo em que as petroleiras internacionais estão sob forte pressão das sociedades, o leilão foi visto como “laranja madura, na beira da estrada”, a que se refere canção de Ataulfo Alves: ou “tá bichada, Zé, ou tem marimbondo no pé”.

Há, portanto, dois motivos para celebrar o “fracasso” do leilão. Evita-se um enorme prejuízo ao Brasil. E aparecem, pela primeira vez de forma muito palpável – pois eram centenas de bilhões envolvidos – sinais de que o governo Bolsonaro tornou-se inconfiável a médio prazo, inclusive para os que mais se aproveitam de suas políticas. Valem, ainda assim, duas observações cruciais.

Primeira: o mais importante nem era o valor. Num artigo publicado pela edição brasileira do Le Monde Diplomatique, e reproduzido em nossa seção Outras Mídias, o economista Rodrigo Leão revela as consequências geopolíticas da eventual transferência dos “excedentes da cessão onerosa” às petroleiras ocidentais. Após o golpe de 2016, mostra ele, o governo brasileiro passou a adotar uma postura esdrúxula, para um país produtor de petróleo. Ao invés de se alinhar com as demais nações que possuem grandes reservas, age como se fizesse parte do grupo de importadores do combustível – cuja liderança é exercida, historicamente, por Washington.

Segunda: hoje, deu-se apenas uma batalha. O esforço de desmonte da Petrobras, realizado pelo governo Bolsonaro, prosseguirá. A estatal perdeu sua distribuidora de gás e boa parte de suas refinarias; está prestes a ficar sem a rede de postos de combustível BR. Em entrevista à Folha, no último domingo, o ministro Guedes afirmou que sua intenção é privatizá-la por completo.

A ameaça persistirá, portanto. Porém, mais um alento: o resultado de hoje demonstra que nada está perdido: as próprias corporações globais calculam os riscos; contam com a possibilidade de as políticas hoje em curso serem anuladas e revertidas. Valerá a pena, no futuro, mostrar que têm razão em temer…

*Antônio Martins é editor de Outras Palavras