Apesar do imaginário da culinária estar repleto de figuras femininas, o que se vê nas cozinhas profissionais é o oposto

23/09/2016 | Políticas de igualdade

Chefs mulheres lutam para conquistar protagonismo nas cozinhas profissionais, superando o assédio e o machismo comuns na profissão. 

Fernanda Machado

O Tempo – 18/09/2016

Quando pensamos em cozinha, a imagem que vem à cabeça provavelmente será a de uma avó preparando quitutes, ou de uma mãe se desdobrando para alimentar os filhos. Apesar do imaginário da culinária estar repleto de figuras femininas, o que se vê hoje nas cozinhas profissionais geralmente é o oposto: um ambiente comandado por homens. Tanto que, da lista dos 50 melhores restaurantes do mundo de 2016, no ranking feito pela revista britânica “Restaurant”, não há sequer uma casa chefiada por mulher.

Isso não quer dizer que elas não estejam lá. Assim como em outras profissões classificadas de forma preconceituosa como masculinas, as mulheres lutam para conseguir seu lugar ao sol na gastronomia, enfrentando uma rotina de assédio e machismo. “Depois de um ano com meu restaurante, entendi que todas as mulheres que passaram por nossa cozinha tiveram pouco protagonismo em sua história em outras casas. Para mim, esse protagonismo tem que ser cada vez mais valorizado, até porque os homens nunca se aproximaram da cozinha doméstica”, reflete Bruna Martins, proprietária do bistrô Birosca S2.

Para além do domínio dos cargos de chefia, o papel do homem como chef de cozinha já está tão impregnado no imaginário coletivo que as chefs mulheres costumam passar por situações constrangedoras. “Fiz um evento na casa de um cliente e chamei um amigo para me ajudar nas montagens. Quando as pessoas queriam parabenizar o chef, iam direto até ele”, conta Julia Martins, dona do Espaço Julia Martins.

Situação semelhante acontecia com Silvana Watel, que comanda a cozinha do Au Bon Vivant. Sócia do marido Philippe Watel, ela teve que esclarecer inúmeras vezes que ele é o francês, mas é ela quem cozinha. “Além disso, um dos casos mais machistas que vivi foi quando tentei fazer um curso de cozinheira no Senac de Salvador, e não pude porque sou mulher”, diz. Na época, a escola não deu sequer uma justificativa para a exclusão de gênero.

Além do assédio moral, ainda existem os casos de assédio sexual, também comuns no ambiente da cozinha. “Interrompi minha formação um pouco por medo. Sinto falta de algumas bases que hoje tenho que buscar na raça, porque não tive coragem de colocar a mochila nas costas e ir trabalhar em um grande restaurante fora. Admiro as mulheres que conseguiram fazer isso”, revela Bruna.

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História. Silvana Watel explica que a “invasão” masculina na gastronomia vem do século XVIII. Naquela época, as cozinhas dos reinos eram comandadas por homens, já que o cargo de cozinheiro era de total confiança. “Eles cuidavam da logística de entrega, da administração de tudo que se comia nos castelos. As mulheres não exerciam esse tipo de função”, explica. “Quando os reinos foram extintos, esses cozinheiros perderam seus empregos e começaram a montar restaurantes, incentivando o conceito de sair para comer por prazer, que ainda não existia”, conta.

E, se as mulheres já alcançaram importantes direitos desde aquela época, não faz mesmo sentido que seu protagonismo seja apagado na culinária. “A cozinha, em sua origem, é muito feminina. Hoje, vejo que as mulheres estão conseguindo reconquistar o espaço. Em termos de competência, somos tão boas quanto os homens, ou mais”, afirma Silvana.

O grande desafio, na opinião de Bruna, além do ambiente machista, são as outras limitações que as mulheres enfrentam por questões culturais. “Para uma mulher que é mãe é complicado. Mas aí entramos em outra luta. O pai tem que ser tão responsável pelo filho quanto a mãe, para que ela tenha a opção de trabalhar à noite”, defende.

A mudança na concepção das cozinhas profissionais, visando o respeito dos trabalhadores, também é um caminho. “As pessoas acham que o trabalho na cozinha é pesado, puxado, e que a mulher não aguenta a pressão. Mas a cozinha é feita de criatividade”, comenta Nayara Faria, chef do restaurante La Palma. “Aqui trabalhamos em equipe. Como convivemos em um ambiente agradável, o dia a dia é melhor”, completa.

Com resistência, criatividade e vontade de trabalhar, as chefs estão se unindo e rompendo, inclusive, a ideia de rivalidade, que é, com frequência, associada ao sexo feminino. Um bom exemplo é a chef Talita Viza, que hoje celebra parcerias com outras companheiras e vê seu negócio, a Alento Sorvetes, se expandir a cada ano. “Um dos meus diferenciais é o empreendedorismo. E posso dizer que combati o machismo me aliando a grandes mulheres empreendedoras”, garante.