Christian Ingo Lenz Dunker: "A decomposição do bolsonarismo"

27/05/2020 | Política

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Christian Ingo Lenz Dunker

Carta Maior, 04/05/2020

Já há algum tempo a esquerda brasileira se pergunta o que ela deve fazer, ou o que ela pode fazer, que possa concorrer com os atos auto-desagregadores do próprio presidente. Neste sentido Bolsonaro parece ser um presidente que segue a cartilha de Maquiavel de modo até mesmo exagerado, ou seja, ele consegue ser a melhor oposição de si mesmo. Isso é bom, porque a o tempo parece estar a favor, mas isso é ruim porque deixa a imaginação política da esquerda em compasso de espera. Para alguns a capacidade de gerar pautas auto-sabotadoras, partindo do próprio Palácio do Planalto faz lembrar a lógica do futebol quando percebe-se que é melhor deixar um jogar à sua própria sorte do que alocar recursos para bloqueá-lo. “A natureza marca”, dirá o ditado.

Segundo Esther Solano, que tem acompanhado o bolsonarismo, na boca do caixa, ali na quebrada onde Férrez tem nos transmitido a radiodifusão do colapso, há dois tipos de bolsonarismo: o nuttela, que é definido basicamente pelo anti-petismo e pelo espírito alérgico à política e a “tudo isso que está aí” e o bolsonarismo raíz, ou seja, 10 ou 15% de pessoas altamente mobilizada em torno do mito, dispostas a apostar sua vida no risco Covid e nas demonstrações de amor fatal pelo desavergonhado.

Freud colocou-se dois problemas fundamentais sobre a lógica da vida amorosa. O primeiro diz respeito às condições que tornam alguém amável. E o número e qualidade de condições para amar ou ser amado por alguém é quase uma definição involuntária de neurose. Lista grande, como supermercado do mês, neurose franca. Lista curta, tanto faz, o que tiver para hoje, sinal de maturidade e normalidade. O segundo problema freudiano parte de uma observação empírica desagradável: o amor tende a decair, como as órbitas de um isótopo radiotivo de um elemento químico instável. O homem tenderá a voltar à mesa de bar com seus amigos, lamentando o destino, e a mulher a se consolar com os filhos que impediram seu futuro glorioso. Vale para a vida íntima, vale para a vida pública.

Bolsonaro presente esta dificuldade com seu complexo evidente de que ninguém pode brilhar mais do que ele: ministros da saúde, da educação, do exército ou do que quer que seja, podem ser percebidos como mais poderosos do que ele. Assim como o ciumento, inseguro, que acha que sua mulher pode ser roubado por outro, e atribui isso a peculiaridades delirantes, como por exemplo, o tamanho de seu pênis, o presidente está disposto a repudiar qualquer um que atrai mais brilho narcísico do que ele mesmo.

A esquerda olha para esta paixão delirante e considera, acertadamente, que ela tende a se decompor entropicamente. Quanto menos os adversários de fora tiverem consistência, mais os inimigos internos começarão a ser perseguidos. E isso está dando certo. Tão certo quanto Stalin teria eliminado todos os que com ele podiam competir, desde que tivesse Beria ao seu lado para fazer o serviço sujo. Por isso a Polícia Federal é crucial. Não porque ela agirá de forma corrupta ou leniente. Não é porque ela vai eliminar o Queiróz, acobertar o 02 ou funcionar como força de atemorização para o 03, mas porque ela representa o controle imaginário do poder de silenciar. O poder de matar dentro da lei. O poder de deixar morrer sem consequência não é apenas um absurdo moral, mas um capital político silencioso. Ninguém o dirá explicitamente, mas concordarão e votarão segundo a lógica da necropolítica.

Penso que o fator de impacto decisivo que a esquerda pode exercer neste momento, além de contar com a realidade da epidemia a seu favor, diz respeito a separação diagnóstica entre o conservadorismo e o bolsonarismo. Bolsonaro precisa de inimigos e não vive sem eles. Uma esquerda inconsistente é um problema nesse sentido. Ele terá que inventar um vírus Sars-Covid-02 encantados, cheio de vontade e amor chinês para dar, senão sua retórica dualista entrará em colapso.

Mas nesta hora será preciso introduzir um grão a mais de desestabilização no bolsonarismo, que diz respeito ao fato de que não temos tantos fascistas assim no Brasil. Há muitos, mas nem tantos. O problema é que se você trata um conservador como um fascista ele se torna um fascista ... por adesão. E se você trata um conservador como fascista ele percebe um “certo” exagero e logo aumenta sua crença reversa, baseada na acusação crítica do outro.

Seria preciso voltar ao movimento Integralista brasileiro, que ao contrário dos fascismos europeus, não estava ligado à raça, mas a religião, para entender porque a moralidade neopentecostal em defesa da família não é simplesmente um absurdo retrógrado, mas uma forma de sobrevivência em condições extremas de desamparo, demissão do Estado e evasão da esquerda. Seria preciso voltar às maiorias silenciosas que apoiaram o golpe militar como uma operação de modernização do Brasil, desde que conveniente para os negócios emergentes derivados do desenvolvimentismo. Seria preciso voltar ao antigo tema da tensão entre o urbano e o rural, no processo de constituição do país, para perceber que o Brasil profundo sofre com um “delay” temporal que nem sempre é reconhecido pelo ímpeto progressista nacional. Seria preciso, enfim, rever a nossa arqueologia intuitiva do conservadorismo nacional para entender por que a base popular do bolsonarismo está se movendo das classes médias e altas, para as classes populares. Isso não é só um efeito dos 600,00, aliás providenciados por Rodrigo Maia.

A esquerda precisa entender mais sobre a lógica interna e intrínseca da degradação da vida amorosa, inclusive da vida amorosa com os líderes obscenos. Muitos querem entrar em campo já, pedir o afastamento (como eu mesmo e nosso grupo na USP), mas recuam diante do imenso capital de autodestruição renovado a cada semana pelo próprio presidente. Nenhuma bomba é mais poderosa do que os “... e daís da gripezinha ”. Nenhuma picanha compete com o colchão duro servido nos “churrascos” da gente diferenciada. Nenhuma marcha democrática compete com os passeios de “jet-skys”. Nenhum abaixo assinado pode competir com as confissões ostensivas de corrupção, em reunião de ministério, em conversa gravada com Moro. Nenhuma greve ou passeata pode fazer frente a declaração de fechamento do Supremo Tribunal Federal, renovação de AI-5 ou carreata da contaminação já.

Mas apesar disso tudo o bolsonarismo balança mas não cai por causa do congresso que se vende como sempre, e por causa dos militares que não se vendem como sempre. O posto Ipiranga deixou de ser um fator relevante desde que a economia virou de pernas para o ar e passou a imprimir dinheiro para salvar a lavoura. Ou seja, neoliberalismo é que não é, e pior confessa que não tem solução para respirador e SUS sem o Estado.

Em suma a degradação do bolsonarismo depende daquele amigo caridoso do casal, que na hora que coisa aperta está disposto a separar o neofascismo de um do conservadorismo do outro. Nossos conservadores podem ser interesseiros, mas, como disse Regina Duarte, não falam palavrão. Precisamos começar a reconhecer que há um gosto conservador, purista e quadrado, que você ou eu não gostamos muito, mas que é um gosto válido como qualquer outro. O gosto que não vale é o tosco, o abuso sem qualidade, a falta de noção e ou o alopramento de quem não sabe o que está falando como Olavo, Damares, Ernesto (ele mora no bar?) e Weintraub. É claro que esta turma está na cortina de fumaça para a roubalheira miúda da milícia, esta sim, o fulcro do poder bolsonarista, a amante que está no armário esperando para colocar fogo no circo.

Por exemplo, as universidades brasileiras falam pouco com o povo. Elas abrigam modos conservadores e corporativos, mas isso não significa que a terra é plana, que a maconha hidropônica está plantada nos cursos de Biologia ou que estamos passando a Mamadeira de Piroca nas aulas de Psicologia do Desenvolvimento. Em ciência tem o certo (para hoje), tem o errado (para hoje), tem o discutível (para ontem e hoje) e tem o que está fora de noção (nem ontem nem hoje). O bolsonarismo raíz só se aplica ao último termo desta equação. Quando a esquerda critica qualquer um como se fosse um gado geral, ele mantém o amor baseado no ódio ao inimigo acesso e o braseiro não muda a posição do vento. De forma sintética e quero crer decisiva, o bolsonarismo acaba quando os conservadores perceberem que estão sendo enganados. É tarefa da esquerda trazê-los para o jogo de novo.

Nem todo gado é Nelore e nem toda picanha é de primeira.

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista.