José de Souza Martins: "Brasil não reconhece o direito à diferença"

16/07/2020 | Cultura política

José de Souza Martins*

Valor Econômico, 3/07/2020

É compreensível e necessário que a sociedade brasileira se preocupe com a injustiça racial que penaliza negros, mas também pardos e brancos em todos os âmbitos de nossa vida social. Falta a todos, no entanto, a consciência crítica dos fatores e das causas, especialmente os preconceitos, dos diferentes tipos de injustiça social que vitimam um número enorme de brasileiros, não só nem principalmente os negros. A sociedade brasileira é uma sociedade intolerante, de muitas e variadas intolerâncias.

A injustiça social como fundamento do sistema econômico é constitutiva desta sociedade, desde o começo de nossa história. Ao longo do tempo, foi ela “aperfeiçoada”. Nunca houve claros propósitos de suprimi-la e superá-la. Aliás, aqui, ela nasce do próprio direito, histórica e unilateralmente referido à cor pobre da liberdade, a da falsa brancura do escravismo. Mais ainda, os que querem se libertar dessa injustiça, mesmo hoje, sem o saber, querem ser, sob distintas colorações de pele, o branco desse branquismo ideológico.

São curiosos os argumentos jurídicos, já no século do descobrimento, para justificar que seres humanos reconhecidamente nascidos iguais se tornassem desiguais porque a pobreza os obrigava a venderem-se para ter um prato de comida. Porém, pobreza provocada pelos próprios beneficiários da escravidão, que lhes destruíam antes o sistema econômico tribal em nome da “guerra justa”. Na crítica que o padre Manoel da Nóbrega, formado pela Universidade de Coimbra, fez à escravidão dos índios e à amoralidade desse artifício, o fundamento hipócrita da desigualdade social no Brasil fica evidente. Podia ser escravizado o ser humano que “se vendesse“ para ter o que comer.

Com base no mesmo fundamento jurídico, a escravidão indígena, a do pardo, não se justificava, razão da crítica de Nóbrega. Porque o índio capturado e privado de seu modo de vida não tinha como sobreviver senão pela dependência em relação ao seu captor, que dele se servia. Mas a escravidão negra, sim, porque o negro já era embarcado nos navios negreiros como mercadoria, reduzido a essa condição pelos traficantes na própria África.

As escravidões legaram à sociedade brasileira os fundamentos do preconceito contra a inferioridade socialmente produzida por quem dela se beneficia. Com a abolição, em 1888, tornou-se ele preconceito de cor.

Durante a escravidão, o escravo fugido aparecia nos anúncios de jornal não como negro, porque negra já era a cor do cativeiro e da inferioridade social a ele correspondente. Os negros fugidos eram descritos por seus estigmas físicos, não pelo estigma racial, geralmente marcas do trabalho brutal, cicatrizes e defeitos físicos. Ou “defeitos de caráter”: mulatos destros na viola caipira tinham esse talento apontado como atributo de escravo fugido, sinal de folgado.

O Brasil herdou dessas escravidões a discriminação por atributos que não são apenas de raça ou etnia. Discriminação que vitima pessoas por diferentes estigmas, até atributos naturais, como o de ser mulher. Ou de aparência: “feio”, “baixo”, calvo, gordo. Ou culturais: protestantes, ateus, comunistas, socialistas. O elenco é extenso.

No Brasil, assim como o negro é discriminado nas oportunidades de trabalho, a mulher negra ou branca, também o é. Alguém dirá, com razão, que a mulher negra é mais discriminada do que a mulher branca. O grave não é apenas a diferença racial da discriminação, e sim a discriminação que nela vitima seres humanos, tendo como pretexto o preconceito estrutural que peneira o acesso às insuficientes possibilidades sociais da sociedade brasileira.

Para compreendermos o drama de milhões de brasileiros, é necessária uma consciência crítica severa do que são os pretextos sob os quais enterramos a obrigação política e moral do respeito pelo princípio da igualdade sobre o qual a República postiça foi aqui implantada.

Na verdade, nossos preconceitos sociais são manifestações de intolerância em relação às diferenças e aos diferentes. O Brasil é um dos países no limiar do mundo desenvolvido que não reconhece o direito à diferença.

Reduzir a discriminação social à raça, ou melhor, à cor, é simplificar e deturpar o que é a desigualdade no Brasil e esconder os fatores e as consequências da diversidade de desigualdades entre nós. 

O racismo é aqui uma variante radical da cultura do preconceito. Racismo é a transformação do preconceito em discriminação ativa, em rejeição do outro, por motivo de cor da pele. Temos que compreender nossa própria ignorância, socialmente produzida, para combater os preconceitos por meio dos quais a expressamos e por meio dos quais viabilizamos nossa própria política de injustiças sociais.

José de Souza Martins é sociólogo e professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP.