José Graziano e Mauro Del Grossi : "Transferência de renda, remédio contra a fome"

25/06/2020 | Políticas de igualdade

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Garantir alimentação saudável a todos é fundamental para evitar que a fome volte ao Brasil

José Graziano e Mauro Del Grossi

Valor Econômico, 22 /06/2020

As sucessivas estimativas sobre o impacto econômico da pandemia da covid-19 apontam para uma depressão sem precedentes no país. Segundo os livros de história, as pandemias que assolaram a humanidade sempre afetaram os mais pobres; e são eles que efetivamente acabam morrendo pela pobreza ou pelas más condições sanitárias delas decorrentes.

Garantir alimentação saudável a todos é fundamental para evitar que a fome volte ao Brasil

A pergunta que se coloca é: estamos preparados para enfrentar de novo a fome no Brasil? Na proporção que se desenha com o impacto da covid-19, a resposta é não. E para comprovar isso, basta ver o número crescente de pessoas que fazem filas intermináveis para receber doações de alimentos nas instituições beneficentes.

Diante dessas circunstâncias, expressar solidariedade é vital. Mas, para suprir os alimentos que todos precisam até o fim dessa pandemia, ela não é e não será suficiente. Passado o momento crítico onde a mobilização é intensa, as doações tendem a se reduzir. E nada garante que no “novo normal” pós-covid-19, isso será diferente.

 Nesse contexto, é essencial pontuar a premente necessidade de uma política de segurança alimentar robusta, especialmente em países marcados por uma grande desigualdade social, como o Brasil.

 O indicador mais evidente de que o nosso país não está preparado para enfrentar a magnitude da fome que se avizinha é o aumento das iniciativas públicas e privadas de “distribuição de cestas básicas”.

A distribuição de alimentos em espécie é considerada em todo o mundo moderno uma forma ultrapassada, clientelista e eleitoreira de combate à fome. Só se justifica - e ainda assim temporariamente até que se implantem outras formas mais efetivas - em situações extremas, como guerras e desastres naturais, como seca prolongada, terremoto, inundação, onde os canais normais de distribuição de alimentos foram destruídos.

O Programa Mundial de Alimentos (PMA), por exemplo, faz isso hoje apenas nos países em guerra ou conflitos abertos, como o Sudão do Sul e o Iêmen. Mas na maioria dos outros países, mesmo aqueles onde há conflitos, as transferências monetárias (cash transfers) são preferidas por serem mais eficientes. E especialmente devido a três fatores.

Primeiro, porque são processos muito mais rápidos e seguros: hoje, com a ajuda de aplicativos do celular, você pode cadastrar as pessoas rapidamente e mandar o dinheiro diretamente para suas contas.

Segundo, porque as transferências monetárias não envolvem questões complexas de logística de montagem e distribuição das cestas, que sempre dão margem a desvios, corrupção, e outros fatores. Além disso, encarecerem o valor dos produtos distribuídos, visto que a produção de alimentos tem um custo relativamente baixo no Brasil; o que a encarece é justamente a montagem, transporte e a distribuição das cestas.

E, terceiro e mais importante na atual conjuntura, as cestas gratuitas levam a quedas nos preços de alimentos no comércio local, contribuindo negativamente para o seu crescimento e agravando ainda mais a crise econômica dos produtores locais. A transferência monetária funciona com efeito contrário - permite uma injeção de dinheiro na economia local, o que é um poderoso estímulo ao aquecimento daquele comércio.

E como isso tem funcionado no Brasil? O Bolsa Família (BFA), quando instituído pelo governo Lula em 2003, unificou os diversos cartões existentes (como o Fome Zero, Bolsa Escola e outros) e ampliou significativamente o programa para todos os municípios do país. O BFA atingiu em abril deste ano, 14,3 milhões de famílias beneficiadas em 4.734 municípios do país, o que representa praticamente 43 milhões de pessoas.

Enquanto isso, a primeira parcela do Auxílio Emergencial já beneficiou quase 60 milhões em abril e há pelo menos mais 10 milhões de novas solicitações em análise.

Se retirarmos os 13,5 milhões de beneficiados que também faziam parte do BFA, teremos 46,5 milhões de novos beneficiados que podem representar mais de 90 milhões de pessoas adicionalmente atendidas pelo AE, considerando-se que cada auxílio pago beneficia ao menos duas pessoas.

Como nossa população atualmente é de 211 milhões, a cobertura do BFA mais o AE passam de 65%, ou seja, praticamente 2 de cada 3 brasileiros estão recebendo alguma transferência de renda durante a pandemia.

Evidentemente há uma série de fraudes e superposições desses benefícios. Mas, ainda assim, se trata de uma rede emergencial de cobertura social invejável para enfrentar essa pandemia, que a maioria dos países em desenvolvimento não tem.

O que fazer então para transformar essa cobertura em uma efetiva mitigação dos efeitos da pandemia no aumento da pobreza? Seguramente, a solução passa por aperfeiçoar a cobertura, além de buscar rapidamente identificar os mais vulneráveis que precisam de ajuda; e, claro corrigir as fraudes. No entanto, há um elemento adicional a considerar: o valor dessas transferências está muito aquém das necessidades básicas das famílias mais pobres para garantir uma alimentação adequada.

Uma prova disso é a já citada superposição de 95% entre os beneficiários do BFA e o AE, que evidencia a insuficiência do valor recebido pelas famílias do BFA para enfrentar a conjuntura atual de desemprego crescente e perda de renda decorrente da interrupção de suas atividades.

Um dado adicional toma como base a Pesquisa de Orçamentos Familiares POF/IBGE de 2018/19. No caso das famílias com renda total até dois salários mínimos, as despesas de consumo corrente - descontado o aluguel imputado - atingem R$ 1.235,74 (valor corrigido para abril de 2020); e apenas os gastos com alimentação chegam a R$ 329,84. Como as outras despesas de consumo corrente, como luz, água, gás, são mais difíceis de comprimir, a tendência é reduzir o valor gastos com alimentação. Exemplo já visível disso em tempos de covid-19 é a redução na compra de produtos frescos - frutas e verduras, principalmente - e o aumento dos processados e, pior ainda, dos ultraprocessados, uma receita infalível para aumento da obesidade.

 É por essa e outras razões que uma política de segurança alimentar não pode se resumir às transferências de renda monetária, emergenciais ou não, embora isso seja fundamental para enfrentar a pandemia e a fome que se seguirão a ela: outros instrumentos de políticas públicas precisam ser acionados e fortalecidos, em especial o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar) e o PNAE (Alimentação Escolar) com compras locais.

Nessa hora em que estamos ensaiando uma flexibilização do isolamento social, garantir uma alimentação saudável a todos - especialmente aos mais pobres - é fundamental para evitar que a fome volte ao Brasil numa proporção difícil de imaginar.

José Graziano da Silva é agrônomo e foi diretor-geral da FAO.

Mauro Del Grossi é economista e professor da UnB.