José Luís Fiori: No Chile, Pinochet massacrou a oposição e economistas ultraliberais privatizaram tudo

24/10/2019 | Cultura política

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O sociólogo e cientista político, José Luis Fiori, escreveu, em 2015, um artigo em que previu, com incrível acerto, os desdobramentos da crise política brasileira. Disse ele: “Duas coisas ficaram mais claras nas últimas semanas, com relação à tal da ‘crise brasileira’. De um lado, o despudor golpista, e de outro, a natureza ultraliberal do seu projeto para o Brasil” (Carta Maior, 26/09/2015). Ele terminou sua reflexão alertando para a insensatez ultraliberal: “Neste sentido, não está errado dizer que os dois lados deste mesmo projeto são cúmplices e compartem a mesma e gigantesca insensatez, ao supor que seu projeto golpista e ultraliberal não encontrará resistência  e, no limite, não provocará uma rebelião ou enfrentamento civil, de grandes proporções, como nunca houve antes no Brasil”. Publicamos este artigo praticamente na integra, de forma editada, para facilitar a compreensão dos leitores e leitoras.

JOSÉ LUÍS FIORI DENUNCIOU, EM 2015, A ARTICULAÇÃO DE ECONOMISTAS ULTRALIBERAIS QUE RESULTOU NO GOLPE CONTRA A PRESIDENTA DILMA ROUSSEF. Fiori alertou em 2015: “Duas coisas ficaram mais claras nas últimas semanas, com relação à tal da ‘crise brasileira’. De um lado, o despudor golpista, e de outro, a natureza ultraliberal do seu projeto para o Brasil. Do ponto de vista político, ficou claro que dá absolutamente no mesmo o motivo dos que propõem um impeachment, o fundamental é sua decisão prévia de derrubar uma presidente da republica eleita por 54,5 milhões de brasileiros há menos de um ano, o que caracteriza um projeto claramente golpista e antidemocrático e, o que 'e pior, conduzido por lideranças medíocres e de discutível estatura moral”.(...) “Talvez, por isto mesmo, nas últimas semanas, a imprensa escalou um grupo expressivo de economistas liberais, para formular as ideias e projetos do que seria o governo nascido do golpe. Sem nenhuma surpresa: quase todos repetem as mesmas fórmulas, com distintas linguagens. Todos consideram que é preciso primeiro resolver a ‘crise política’, para depois poder resolver a ‘crise econômica’; e uma vez ‘resolvida’ a crise política,  todos propõem a mesma coisa, em síntese: ‘menos estado e menos política’”.

NÃO EXISTE VIDA ECONÔMICA SEM POLÍTICA E SEM ESTADO. Fiori disse que economia envolve relações sociais de poder: “Não interessa muito o detalhamento aqui das suas sugestões técnicas. O que importa é que suas premissas e conclusões são as mesmas que a utopia liberal repete desde o século XVIII, sem jamais alcançá-las ou comprová-las, como é o caso de sua crença na racionalidade utilitária do homo economicus,  na superioridade dos “mercados desregulados”, na existência de mercados “competitivos globais”, e na sua fé cega na necessidade e possibilidade de despolitizar e reduzir ao mínimo a intervenção do Estado na vida econômica”.(...) “É muito difícil para estes ideólogos que sonham com o “limbo”, entender que não existe vida econômica sem política e sem estado. É muito difícil para eles compreender ou aceitar que as duas “crises brasileiras” são duas faces de um conjunto de conflitos e disputas econômicas cruzadas, cuja solução tem que passar inevitavelmente pela política e pelo estado”.(...) “Não se trata de uma disputa que possa ser resolvida através de uma fórmula técnica de validez universal. Por isto, é uma falácia dizer que existe uma luta e uma incompatibilidade entre a “aritmética econômica” e o “voluntarismo político”. Existem várias “aritméticas econômicas” para explicar um mesmo déficit fiscal, por exemplo, todas só parcialmente verdadeiras. Parece muito difícil para os economistas em geral, e em particular para os economistas liberais, aceitarem que a economia envolve relações sociais de poder, que  a economia é também  uma estratégia de luta pelo poder do estado, que pode estar mais voltado  para o “pessoal da cobertura”, mas também pode ser inclinado na direção dos menos favorecidos pelas alturas”

O PROJETO DEDESPOLITIZAÇÃO RADICAL DA ECONOMIA E DO ESTADO LEVA À NECESSIDADE IMPLACÁVEL DE UM “TIRANO” OU “DÉSPOTA ESCLARECIDO”. Fiori fala sobre o “fascismo de mercado”: “Agora bem, na conjuntura atual, como entender o encontro e a colaboração destes economistas liberais com os políticos golpistas?  O francês, Pierre Rosanvallon, dá uma pista, ao fazer uma anátomo-patologia lógica do liberalismo da “escola fisiocrática” francesa, liderada por François Quesnay. Ela parte da proposta fisiocrático/liberal de redução radical da política à economia, e da transformação de todos os governos em máquinas puramente administrativas e despolitizadas, fiéis à ordem natural dos mercados. E mostra como e porque este projeto de despolitização radical da economia e do estado leva à necessidade implacável  de um “tirano” ou “déspota esclarecido” que entenda a natureza nefasta da política e do estado, se mantenha “neutro”, e promova  a supressão despótica da política, criando as condições indispensáveis para a realização da “grande utopia liberal”, dos mercados livres e desregulados”.(...) “Foi o que Rosanvallon chamou de “paradoxo fisiocrata”, ou seja: a defesa da necessidade de um “tirano liberal” que “adormecesse”  as paixões e os interesses políticos e, se possível,  os eliminasse”.(...) “No século XX, a experiência mais conhecida deste projeto ultraliberal, foi a  da ditadura do Sr. Augusto Pinochet, no Chile, que foi chamada pelo economista americano, Paul Samuelson, de “fascismo de mercado”. Pinochet foi - por excelência - a figura do “tirano” sonhado pelos fisiocratas: primitivo, quase  troglodita, dedicou-se quase inteiramente à eliminação dos seus adversários e de toda a atividade política dissidente, e entregou o governo de fato  a um grupo de economistas ultraliberais que puderam fazer o que quiseram durante quase duas décadas”.

GOLPISTAS E ULTRALIBERAIS LEVARÃO A UM CONFLITO SEM PRECEDENTES NO BRASIL. Fiori conclui: “No Brasil não faltam -  neste momento - os candidatos com as mesmas características e os economistas sempre rápidos em propor, e  dispostos a levar até as últimas consequências, o seu projeto de “redução radical do Estado” e, se for possível, de toda atividade política capaz de perturbar a tranquilidade dos seus modelos matemáticos e dos seus cálculos contábeis”.(...) “Neste sentido, não está errado dizer que os dois lados deste mesmo projeto são cúmplices e compartem a mesma e gigantesca insensatez, ao supor que seu projeto golpista e ultraliberal não encontrará resistência  e, no limite, não provocará uma rebelião ou enfrentamento civil, de grandes proporções, como nunca houve antes no Brasil”.

José Luís Fiori é professor titular e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)