José Luis Fiori previu, em 2015, a aliança de golpistas e economistas ultraliberais no Brasil

18/05/2017 | Cultura política

O sociólogo e cientista político, José Luis Fiori, tem sido uma das referências de análise para a atuação do Mandato da deputada Marília Campos (PT/MG). Desde 2015, fomos alertados por este grande intelectual brasileiro da aliança que estava se consolidando no Brasil: “Duas coisas ficaram mais claras nas últimas semanas, com relação à tal da ‘crise brasileira’. De um lado, o despudor golpista, e de outro, a natureza ultraliberal do seu projeto para o Brasil” (Carta Maior, 26/09/2015). Ou seja, estava em gestação rápida uma aliança da direita brasileira com economistas ultraliberais vinculados ao mercado financeiro em torno do documento “Uma ponte para o futuro”. 

Esta aliança se consolidou nos meses seguintes com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff e com a implementação dos principais pontos do documento redigido por economistas ultraliberais. A deputada Marília Campos foi uma das lideranças que alertou para os retrocessos que seriam implementados nos meses seguintes, tendo como base os artigos de José Luis Fiori. Em nossos posts nas redes sociais , falamos de Roberto Brant, assessor de Temer, que em entrevista ao Estadão, confessou: “Esse documento de Temer – Uma ponte para o futuro - não foi feito para enfrentar o voto popular. Com um programa desses não se vai para uma eleição”. Transcrevemos um sincericídio de Maria Cristina Fernandes, do jornal Valor Econômico, quando escreveu: “O PMDB viabilizou sua costura de gabinete pró-impeachment com o argumento de que as mudanças a serem feitas no país, por duras, só poderiam ser capitaneadas por um governo não eleito”. Divulgamos um vídeo de Temer de setembro de 2016, em um almoço em Nova York, quando ele assumiu, sem rodeios, seus propósitos golpistas: “Sugerimos ao governo (Dilma) que adotasse as teses que nós apontávamos naquele documento chamado ‘Ponte para o futuro’. Como isso não deu certo, não houve adoção, instaurou-se o processo que culminou com a minha efetivação como presidente da República”. Veja a seguir as análises de José Luis Fiori de agosto e setembro de 2015. 

A aliança dos líderes golpistas e dos economistas ultraliberais no Brasil

Golpistas e economistas ultraliberais: menos estado e menos política. “Duas coisas ficaram mais claras nas últimas semanas, com relação à tal da ‘crise brasileira’. De um lado, o despudor golpista, e de outro, a natureza ultraliberal do seu projeto para o Brasil. Do ponto de vista político, ficou claro que dá absolutamente no mesmo o motivo dos que propõem um impeachment, o fundamental é sua decisão prévia de derrubar uma presidente da republica eleita por 54,5 milhões de brasileiros há menos de um ano, o que caracteriza um projeto claramente golpista e antidemocrático e, o que 'e pior, conduzido por lideranças medíocres e de discutível estatura moral”.(...) “Talvez, por isto mesmo, nas últimas semanas, a imprensa escalou um grupo expressivo de economistas liberais, para formular as ideias e projetos do que seria o governo nascido do golpe. Sem nenhuma surpresa: quase todos repetem as mesmas fórmulas, com distintas linguagens. Todos consideram que é preciso primeiro resolver a ‘crise política’, para depois poder resolver a ‘crise econômica’; e uma vez ‘resolvida’ a crise política,  todos propõem a mesma coisa, em síntese: ‘menos estado e menos política’”.

Não existe vida econômica sem política e sem estado. “Não interessa muito o detalhamento aqui das suas sugestões técnicas. O que importa é que suas premissas e conclusões são as mesmas que a utopia liberal repete desde o século XVIII, sem jamais alcançá-las ou comprová-las, como é o caso de sua crença na racionalidade utilitária do homo economicus,  na superioridade dos “mercados desregulados”, na existência de mercados “competitivos globais”, e na sua fé cega na necessidade e possibilidade de despolitizar e reduzir ao mínimo a intervenção do Estado na vida econômica”.(...) “É muito difícil para estes ideólogos que sonham com o “limbo”, entender que não existe vida econômica sem política e sem estado. É muito difícil para eles compreender ou aceitar que as duas “crises brasileiras” são duas faces de um conjunto de conflitos e disputas econômicas cruzadas, cuja solução tem que passar inevitavelmente pela política e pelo estado”.(...) “Não se trata de uma disputa que possa ser resolvida através de uma fórmula técnica de validez universal. Por isto, é uma falácia dizer que existe uma luta e uma incompatibilidade entre a “aritmética econômica” e o “voluntarismo político”. Existem várias “aritméticas econômicas” para explicar um mesmo déficit fiscal, por exemplo, todas só parcialmente verdadeiras. Parece muito difícil para os economistas em geral, e em particular para os economistas liberais, aceitarem que a economia envolve relações sociais de poder, que  a economia é também  uma estratégia de luta pelo poder do estado, que pode estar mais voltado  para o “pessoal da cobertura”, mas também pode ser inclinado na direção dos menos favorecidos pelas alturas”.

O projeto de despolitização radical da economia e do estado leva à necessidade implacável de um “tirano” ou “déspota esclarecido”. “Agora bem, na conjuntura atual, como entender o encontro e a colaboração destes economistas liberais com os políticos golpistas?  O francês, Pierre Rosanvallon, dá uma pista, ao fazer uma anátomo-patologia lógica do liberalismo da “escola fisiocrática” francesa, liderada por François Quesnay. Ela parte da proposta fisiocrático/liberal de redução radical da política à economia, e da transformação de todos os governos em máquinas puramente administrativas e despolitizadas, fiéis à ordem natural dos mercados. E mostra como e porque este projeto de despolitização radical da economia e do estado leva à necessidade implacável  de um “tirano” ou “déspota esclarecido” que entenda a natureza nefasta da política e do estado, se mantenha “neutro”, e promova  a supressão despótica da política, criando as condições indispensáveis para a realização da “grande utopia liberal”, dos mercados livres e desregulados”.(...) “Foi o que Rosanvallon chamou de “paradoxo fisiocrata”, ou seja: a defesa da necessidade de um “tirano liberal” que “adormecesse”  as paixões e os interesses políticos e, se possível,  os eliminasse”.(...) “No século XX, a experiência mais conhecida deste projeto ultraliberal, foi a  da ditadura do Sr. Augusto Pinochet, no Chile, que foi chamada pelo economista americano, Paul Samuelson, de “fascismo de mercado”. Pinochet foi - por excelência - a figura do “tirano” sonhado pelos fisiocratas: primitivo, quase  troglodita, dedicou-se quase inteiramente à eliminação dos seus adversários e de toda a atividade política dissidente, e entregou o governo de fato  a um grupo de economistas ultraliberais que puderam fazer o que quiseram durante quase duas décadas”.

Golpistas e ultraliberais levarão a um conflito sem precedentes no Brasil.  “No Brasil não faltam -  neste momento - os candidatos com as mesmas características e os economistas sempre rápidos em propor, e  dispostos a levar até as últimas consequências, o seu projeto de “redução radical do Estado” e, se for possível, de toda atividade política capaz de perturbar a tranquilidade dos seus modelos matemáticos e dos seus cálculos contábeis”.(...) “Neste sentido, não está errado dizer que os dois lados deste mesmo projeto são cúmplices e compartem a mesma e gigantesca insensatez, ao supor que seu projeto golpista e ultraliberal não encontrará resistência  e, no limite, não provocará uma rebelião ou enfrentamento civil, de grandes proporções, como nunca houve antes no Brasil”.(...) Luiz G. Schymura, “Não foi por decisão de Dilma que o gasto cresceu”, Valor, 7/8/2015: “Uma vez me perguntaram se o Estado brasileiro é muito grande. Respondi assim: Eu vou lhe dar o telefone da minha empregada, porque você está perguntando isto para mim, um cara que fez pós-doutorado, trabalha num lugar com ar-condicionado, com vista para o Cristo Redentor. Eu não dependo em nada do Estado, com exceção de segurança. Nesse condomínio social, eu moro na cobertura. Você tem que perguntar a quem precisa do Estado”.(...) “Porque não é necessário dizer que tanto os lideres golpistas, quanto seus economistas de plantão, olham para o mundo como se ele fosse uma “enorme cobertura”, segundo a tipologia sugerida pelo Sr. Luiz  Schymura, um raro economista liberal que entende e aceita a natureza contraditória dos mercados e do capitalismo, e a origem democrática do atual déficit público brasileiro”.

José Luis Fiori previu uma girada à direita na América do Sul

Sincronia e transformação. “Apesar de sua aparente instabilidade, a história política da América do Sul apresenta uma surpreendente regularidade, ou “sincronia pendular”. Alguns atribuem ao acaso, outros, à conspiração política, e a grande maioria, aos ciclos e às crises econômicas. Mas na prática, tudo sempre começa em algum ponto do continente e depois se alastra com a velocidade de um rastilho de pólvora, provocando rupturas e mudanças similares nos seus principais países. Esta convergência já começou na hora da independência e das guerras de unificação dos estados sul-americanos, mas assumiu uma forma cada vez mais nítida  e “pendular”, durante o século XX”.(...) “Foi assim que na década de 30, se repetiram e multiplicaram por todo o continente, as crises e as rupturas de viés autoritário; da mesma forma que na década de 40,   quase todo o continente optou simultaneamente pelo sistema democrático que durou até  os anos 60 e 70, quando uma sequencia de crises e golpes militares instalou os regimes ditatoriais que duraram até os anos 80, quando a América do Sul  voltou a se redemocratizar. Mas agora de novo, na segunda década do século, multiplicam-se os sintomas de uma nova ruptura ou inflexão antidemocrática - a exemplo do Paraguai -  com o afastamento parlamentar e/ou judicial do presidente eleito democraticamente”.(...) “Neste momento, até o mais desatento observador já percebeu esta repetição, em vários países do continente, dos mesmos atores, da mesma retórica e das mesmas táticas e procedimentos. Sendo que no caso brasileiro, estes mesmos sinais se somam a um processo de decomposição acelerada do sistema politico, com a desintegração dos seus partidos e  seus ideários,  que vão sendo substituídos por verdadeiros  “bandos”  raivosos e vingativos, liderados por personagens quase todos extremamente medíocres, ignorantes e  corruptos que se mantém unidos pelo único objetivo comum de destroçar ou derrubar um governo frágil e  acovardado”.(...) “Mas a história não precisa se repetir. Mais do que isto,  é possível e necessário resistir e lutar para reverter esta situação, começando por entender  que  esta crise  imediata existe de fato, mas ao mesmo tempo ela está escondendo  um impasse estratégico de maior proporção e gravidade, que o país está enfrentando,  e que não aparece na retórica da oposição, nem tampouco na do governo.  Neste exato momento, o mundo está atravessando uma transformação geopolítica e geoeconômica gigantesca, e seus desdobramentos determinarão os caminhos e as oportunidades do século XXI”.  

Brasil vive o esgotamento de seus dois projetos tradicionais: o liberal e o desenvolvimentista. “E ao mesmo tempo a sociedade brasileira está sentindo e vivendo o esgotamento completo dos seus dois grandes projetos tradicionais: o liberal e o desenvolvimentista. Por isto mesmo, soam tão velhas, vazias e inócuas as declarações propositivas do governo,  tanto quanto as da oposição mais ilustrada.  O mundo bipolar da Guerra Fria acabou há muito tempo, mas também já acabou o projeto multipolar que se desenhara como possibilidade, no início do século XXI”.(...) “Esta mudança já vem ocorrendo há algum tempo, mas ficou plenamente caracterizada na reunião realizada na cidade de UFA, na Rússia, no mês de julho de 2015, do grupo BRICS, e logo em seguida, da Organização de Cooperação de Shangai ( que já conta com adesão - como observadores -  da Índia, do Iran, e  Mongólia) configurando uma nova bipolaridade global entre regiões e civilizações, e não entre países de uma mesma cultura europeia e ocidental”.(...) “É neste contexto que se deve situar e entender  a crescente colaboração militar entre a Rússia e a China,  a nova “guerra fria” da Ucrânia, a reaproximação dos EUA com Cuba e Iran e vários outros movimentos em pleno curso neste momento, ao redor do mundo.  Da mesma forma que se deve entender a extensão do impacto  mundial da crise da Bolsa de Shangai,  e sua sinalização de que está em curso uma mudança da estratégia nacional e internacional da China, envolvendo também sua decisão de entrar na disputa – de longo prazo – pela supremacia monetário-financeira global. A mesma pretensão e disputa que já derrubou vários outros candidatos, nestes últimos três séculos”.(...) “Mas seja qual for o resultado desta disputa, a verdade é que o mundo está transitando para um patamar inteiramente novo e desconhecido, e o Brasil precisa se repensar no caminho deste futuro. Neste contexto, atribuir apenas ao Fisco, a causa ou a solução do impasse brasileiro, é quase ridículo, e tão absurdo quanto restringir a discussão sobre o futuro do Brasil a um debate macroeconômico, ou sobre uma agenda remendada às pressas contento velhas reivindicações libero-empresariais, dispersas e desconectadas”. (...) “O Brasil está vivendo um momento e uma oportunidade única de se “reinventar”, redefinindo e repactuando seus grandes objetivos e a própria estratégia de construção do seu futuro e de sua inserção internacional,  com os olhos postos no século XXI”.(...) “Mesmo assim, nesta hora de extrema violência e irracionalidade, se o Brasil conseguir vencer e superar  democraticamente a crise imediata,  já terá dado um grande passo à frente, rumo a um futuro que seja pelo menos democrático.  Mas atenção, porque este passo não será dado se o governo e suas forças de sustentação não passarem à ofensiva, começando pela explicitação dos seus novos objetivos, e de sua nova estratégia, uma vez que seu programa de campanha caducou. Hoje, como no passado, a simples defensiva “será a vitória de fato das forças reacionárias que hoje investem contra o povo brasileiro”.

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