José Luis Fiori previu, em 2015, a aliança de golpistas e economistas ultraliberais no Brasil para destruir direitos do povo

01/06/2017 | Cultura política

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O sociólogo e cientista político, José Luis Fiori, tem sido uma das referências de análise para a atuação do Mandato da deputada Marília Campos (PT/MG). Desde 2015, fomos alertados por este grande intelectual brasileiro da aliança que estava se consolidando no Brasil: “Duas coisas ficaram mais claras nas últimas semanas, com relação à tal da ‘crise brasileira’. De um lado, o despudor golpista, e de outro, a natureza ultraliberal do seu projeto para o Brasil” (Carta Maior, 26/09/2015). Publicamos este artigo praticamente na integra a seguir. Ao final deste post o leitor encontrará outra reflexão magistral de Fiori, que previu uma girada à direita da América do Sul: “Apesar de sua aparente instabilidade, a história política da América do Sul apresenta uma surpreendente regularidade, ou “sincronia pendular”. Alguns atribuem ao acaso, outros, à conspiração política, e a grande maioria, aos ciclos e às crises econômicas. Mas na prática, tudo sempre começa em algum ponto do continente e depois se alastra com a velocidade de um rastilho de pólvora, provocando rupturas e mudanças similares nos seus principais países. Esta convergência já começou na hora da independência e das guerras de unificação dos estados sul-americanos, mas assumiu uma forma cada vez mais nítida  e “pendular”, durante o século XX”.

Golpistas e economistas ultraliberais: menos estado e menos política. “Duas coisas ficaram mais claras nas últimas semanas, com relação à tal da ‘crise brasileira’. De um lado, o despudor golpista, e de outro, a natureza ultraliberal do seu projeto para o Brasil. Do ponto de vista político, ficou claro que dá absolutamente no mesmo o motivo dos que propõem um impeachment, o fundamental é sua decisão prévia de derrubar uma presidente da republica eleita por 54,5 milhões de brasileiros há menos de um ano, o que caracteriza um projeto claramente golpista e antidemocrático e, o que 'e pior, conduzido por lideranças medíocres e de discutível estatura moral”.(...) “Talvez, por isto mesmo, nas últimas semanas, a imprensa escalou um grupo expressivo de economistas liberais, para formular as ideias e projetos do que seria o governo nascido do golpe. Sem nenhuma surpresa: quase todos repetem as mesmas fórmulas, com distintas linguagens. Todos consideram que é preciso primeiro resolver a ‘crise política’, para depois poder resolver a ‘crise econômica’; e uma vez ‘resolvida’ a crise política,  todos propõem a mesma coisa, em síntese: ‘menos estado e menos política’”.

Não existe vida econômica sem política e sem estado. “Não interessa muito o detalhamento aqui das suas sugestões técnicas. O que importa é que suas premissas e conclusões são as mesmas que a utopia liberal repete desde o século XVIII, sem jamais alcançá-las ou comprová-las, como é o caso de sua crença na racionalidade utilitária do homo economicus,  na superioridade dos “mercados desregulados”, na existência de mercados “competitivos globais”, e na sua fé cega na necessidade e possibilidade de despolitizar e reduzir ao mínimo a intervenção do Estado na vida econômica”.(...) “É muito difícil para estes ideólogos que sonham com o “limbo”, entender que não existe vida econômica sem política e sem estado. É muito difícil para eles compreender ou aceitar que as duas “crises brasileiras” são duas faces de um conjunto de conflitos e disputas econômicas cruzadas, cuja solução tem que passar inevitavelmente pela política e pelo estado”.(...) “Não se trata de uma disputa que possa ser resolvida através de uma fórmula técnica de validez universal. Por isto, é uma falácia dizer que existe uma luta e uma incompatibilidade entre a “aritmética econômica” e o “voluntarismo político”. Existem várias “aritméticas econômicas” para explicar um mesmo déficit fiscal, por exemplo, todas só parcialmente verdadeiras. Parece muito difícil para os economistas em geral, e em particular para os economistas liberais, aceitarem que a economia envolve relações sociais de poder, que  a economia é também  uma estratégia de luta pelo poder do estado, que pode estar mais voltado  para o “pessoal da cobertura”, mas também pode ser inclinado na direção dos menos favorecidos pelas alturas”.

O projeto de despolitização radical da economia e do estado leva à necessidade implacável de um “tirano” ou “déspota esclarecido”. “Agora bem, na conjuntura atual, como entender o encontro e a colaboração destes economistas liberais com os políticos golpistas?  O francês, Pierre Rosanvallon, dá uma pista, ao fazer uma anátomo-patologia lógica do liberalismo da “escola fisiocrática” francesa, liderada por François Quesnay. Ela parte da proposta fisiocrático/liberal de redução radical da política à economia, e da transformação de todos os governos em máquinas puramente administrativas e despolitizadas, fiéis à ordem natural dos mercados. E mostra como e porque este projeto de despolitização radical da economia e do estado leva à necessidade implacável  de um “tirano” ou “déspota esclarecido” que entenda a natureza nefasta da política e do estado, se mantenha “neutro”, e promova  a supressão despótica da política, criando as condições indispensáveis para a realização da “grande utopia liberal”, dos mercados livres e desregulados”.(...) “Foi o que Rosanvallon chamou de “paradoxo fisiocrata”, ou seja: a defesa da necessidade de um “tirano liberal” que “adormecesse”  as paixões e os interesses políticos e, se possível,  os eliminasse”.(...) “No século XX, a experiência mais conhecida deste projeto ultraliberal, foi a  da ditadura do Sr. Augusto Pinochet, no Chile, que foi chamada pelo economista americano, Paul Samuelson, de “fascismo de mercado”. Pinochet foi - por excelência - a figura do “tirano” sonhado pelos fisiocratas: primitivo, quase  troglodita, dedicou-se quase inteiramente à eliminação dos seus adversários e de toda a atividade política dissidente, e entregou o governo de fato  a um grupo de economistas ultraliberais que puderam fazer o que quiseram durante quase duas décadas”.

Golpistas e ultraliberais levarão a um conflito sem precedentes no Brasil.  “No Brasil não faltam -  neste momento - os candidatos com as mesmas características e os economistas sempre rápidos em propor, e  dispostos a levar até as últimas consequências, o seu projeto de “redução radical do Estado” e, se for possível, de toda atividade política capaz de perturbar a tranquilidade dos seus modelos matemáticos e dos seus cálculos contábeis”.(...) “Neste sentido, não está errado dizer que os dois lados deste mesmo projeto são cúmplices e compartem a mesma e gigantesca insensatez, ao supor que seu projeto golpista e ultraliberal não encontrará resistência  e, no limite, não provocará uma rebelião ou enfrentamento civil, de grandes proporções, como nunca houve antes no Brasil”.(...) Luiz G. Schymura, “Não foi por decisão de Dilma que o gasto cresceu”, Valor, 7/8/2015: “Uma vez me perguntaram se o Estado brasileiro é muito grande. Respondi assim: Eu vou lhe dar o telefone da minha empregada, porque você está perguntando isto para mim, um cara que fez pós-doutorado, trabalha num lugar com ar-condicionado, com vista para o Cristo Redentor. Eu não dependo em nada do Estado, com exceção de segurança. Nesse condomínio social, eu moro na cobertura. Você tem que perguntar a quem precisa do Estado”.(...) “Porque não é necessário dizer que tanto os lideres golpistas, quanto seus economistas de plantão, olham para o mundo como se ele fosse uma “enorme cobertura”, segundo a tipologia sugerida pelo Sr. Luiz  Schymura, um raro economista liberal que entende e aceita a natureza contraditória dos mercados e do capitalismo, e a origem democrática do atual déficit público brasileiro”.

José Luis Fiori previu uma guinada à direita na América do Sul. “Apesar de sua aparente instabilidade, a história política da América do Sul apresenta uma surpreendente regularidade, ou “sincronia pendular”. Alguns atribuem ao acaso, outros, à conspiração política, e a grande maioria, aos ciclos e às crises econômicas. Mas na prática, tudo sempre começa em algum ponto do continente e depois se alastra com a velocidade de um rastilho de pólvora, provocando rupturas e mudanças similares nos seus principais países. Esta convergência já começou na hora da independência e das guerras de unificação dos estados sul-americanos, mas assumiu uma forma cada vez mais nítida  e “pendular”, durante o século XX”.(...) “Foi assim que na década de 30, se repetiram e multiplicaram por todo o continente, as crises e as rupturas de viés autoritário; da mesma forma que na década de 40,   quase todo o continente optou simultaneamente pelo sistema democrático que durou até  os anos 60 e 70, quando uma sequencia de crises e golpes militares instalou os regimes ditatoriais que duraram até os anos 80, quando a América do Sul  voltou a se redemocratizar. Mas agora de novo, na segunda década do século, multiplicam-se os sintomas de uma nova ruptura ou inflexão antidemocrática - a exemplo do Paraguai -  com o afastamento parlamentar e/ou judicial do presidente eleito democraticamente”.(...) “Neste momento, até o mais desatento observador já percebeu esta repetição, em vários países do continente, dos mesmos atores, da mesma retórica e das mesmas táticas e procedimentos. Sendo que no caso brasileiro, estes mesmos sinais se somam a um processo de decomposição acelerada do sistema politico, com a desintegração dos seus partidos e  seus ideários,  que vão sendo substituídos por verdadeiros  “bandos”  raivosos e vingativos, liderados por personagens quase todos extremamente medíocres, ignorantes e  corruptos que se mantém unidos pelo único objetivo comum de destroçar ou derrubar um governo frágil e  acovardado”.(...) “Mas a história não precisa se repetir. Mais do que isto,  é possível e necessário resistir e lutar para reverter esta situação, começando por entender  que  esta crise  imediata existe de fato, mas ao mesmo tempo ela está escondendo  um impasse estratégico de maior proporção e gravidade, que o país está enfrentando,  e que não aparece na retórica da oposição, nem tampouco na do governo.  Neste exato momento, o mundo está atravessando uma transformação geopolítica e geoeconômica gigantesca, e seus desdobramentos determinarão os caminhos e as oportunidades do século XXI”.