Kelly Cristina: Ação Afirmativa no ensino superior: justiça social e justiça cognitiva

20/09/2017 | Políticas de igualdade

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Kelly Cristina Cândida de Souza

O debate acerca das desigualdades no ensino superior vem evidenciando que há um consenso de que já não é mais possível e nem aceitável o convívio com a falta de democratização do acesso a esse nível de ensino. Entretanto, por ser ainda um debate, o que se percebe é que não há tanto acordo sobre as medidas que devem ser tomadas para que estas desigualdes sejam corrigidas. Quando tomamos como medida a aplicação do tipo mais radical de ação afirmativa, como política de correção das desigualdades, as cotas; as posições em debate tomam rumos distintos, polarizam-se. Nesse jogo, a própria questão das desigualdades permanece em um segundo plano. Isso torna a exclusão social e racial no ensino superior um fato menor diante de argumentos que ficam reduzidos aos que são pró e os que são contra as cotas.

Para Silvério (2016), no bojo dos argumentos dos chamados detratores das cotas raciais, por exemplo, há argumentos que expressam uma crença ainda muito forte no país, a de que há um elo social que nos envolve e que nos identifica. A adesão das políticas de cotas raciais neste caso representaria uma divisão do país entre negros e brancos, o que levaria a fragilidade da coesão social e até mesmo poderia gerar a deflagração de um conflito racial. Dentro desta perspectiva há sim a aceitação da aplicação de uma modalidade de cotas, as sociais, pois as diferenças sociais e econômicas seriam a raiz dos nossos problemas.

Esse entendimento sobre o que gera a desigualdade e a exclusão ao ensino superior coloca a questão da classe social como o patamar e a medida de todas as coisas relegando ao segundo plano as persistentes desigualdades sociais e entre a população branca e a não branca. Hasembalg (1979), Hasembalg e Silva (1988) e Henriques (2001) e Lima (2015) vêm pesquisando e denunciando a questão da desigualdade na área educacional ou no mercado de trabalho existente entre a população branca e a população negra no Brasil, no sécu lo XX. Esses autores concordam que os dados estatísticos são inequívocos aos evidenciar que as desigualdades sociais guardam fortes relações com as hierarquias raciais. Para Lima (2015), “o processo de desvantagens socioeconômicas colocou a população negra na base da pirâmide social, como também revelou forte capacidade de reprodução, fazendo com que gerações desse grupo tenham maiores dificuldades de mobilidade social.” (p.188).

Por isso, é que as cotas podem ser analisadas como uma importante estratégia político-social para a inserção da população negra no espaço da universidade. Lima (2015) alerta ao fato de que “a posse do diploma do ensino superior dos pais tem impacto decisivo no alcance educacional dos filhos”. (p.188). Sobre isso, Mattos (2003, p. 136), afirma que “o acesso ao ensino superior funciona, na sociedade brasileira, como um fator desencadeador de desenvolvimento social e de expansão da cidadania, pois possibilita a formação de individualidades relativamente autônomas.”. Assim sendo, a luta pela garantia de equidade no ensino superior se justifica também por uma questão de justiça simbólica, do ponto de vista da representa&cce dil;ão social e cidadã, e da justiça material, pela possibilidade de ascensão econômica.

É neste contexto de debate e disputa por representações sociais, e por justiça material e simbólica no ensino superior que se inscreve a luta por ações afirmativas, na modalidade cotas, na Fundação João Pinheiro. O curso de graduação em Administração Pública desta Fundação tem duração de quatro anos, e tem o objetivo de formar profissionais para o ingresso na carreira de Estado de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental2. A graduação no curso de Administração Pública formará o gestor para atuar nas áreas de planejamento e avaliação, administração financeira e orçamentária, contabilidade, modernização da gestão, racionalização de processos, gestão e tecnologia da informação, recursos logísticos, recursos materiais, recursos humanos e administração patrimonial e na formulação, supervisão e avaliação de políticas públicas, constituindo-se em um instrumento fundamental para a modernização do Serviço Público.

Diante disso, seria interessante pensar, ainda que brevemente, sobre o significado dessa graduação, pois após a conclusão do curso os formandos ingressarão em uma carreira de Estado, a de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG), do Poder Executivo do Estado de Minas Gerais. O obje tivo deste texto, portanto, é refletir sobre a relação entre a formulação da Política Pública, destino dos egressos da graduação da Fundação João Pinheiro, e o sujeito social, potencial alvo das políticas formuladas.

Celina Souza (2006), pesquisadora do Centro de Recursos Humanos da Universidade Federal da Bahia, fazendo uma revisão de literatura sobre o tema das Políticas Públicas traz uma série de autores e de definições sobre o tema em foco. Quero destacar quatro acepções sobre as Política Pública trazidas pela autora. A primeira definição sustenta que as Políticas Públicas “são as ferramentas de decisões do governo”. Souza (2006) destaca também que as Políticas Públicas “são a soma das atividades dos governos, que agem diretamente ou através de delegação, e que influenciam a vida dos cidadãos”, é ainda, para a autora “o que o governo escolhe fazer ou não fazer”. Segundo consta, a definição mais conhecid a continua sendo a que diz que “as Políticas Públicas são decisões que implicam responder às seguintes questões: quem ganha o quê, por quê, e que diferença faz”. (p.24). Diante destas definições estamos diante do que podemos chamar de atividades e ações guiadas por interesses. O principal interesse em jogo, no caso de uma política de Estado, deve ser o cidadão, ou seja, o interesse público. É para atender a uma totalidade social que as Políticas são gestadas e geridas.

Como materialidades iniciais das políticas públicas têm-se os textos legais, que podem ser interpretados não só pelo que destacam e evidenciam. Quero chamar atenção também para os seus silêncios, o que ocultam, como por exemplo, os silenciamentos em torno de uma identidade, que de acordo com Kabengele Munanga (2006), “é sempre diversificada, segundo os modos de existência ou de representação, as maneiras de pensar, de julgar, de sentir, próprias às comunidades culturais, de língua, de sexo, às quais pertencem os indivíduos e que são irredutíveis às outras comunidades”. Portanto, em sintonia como Mun anga (2006), reconheço que existe uma humanidade essencializada e universal nas normas legais, nas políticas públicas, criadas tendo em vista os sujeitos universalizados. Ao não fazer ver as diferenças raciais, culturais, de sexo e classe, existentes no Brasil, acabam por privilegiar aqueles que têm condições de corresponder aos objetivos dos projetos e das legislações.

Os dispositivos legais, quando não se pautam em uma realidade social e racialmente diversa, acabam elegendo como público alvo, o humano essencializado. Como consequência, os sujeitos que não correspondem a essa idealização ficam ocultados, invisibilizados. Assim, tais sujeitos acabam ficando entre os silenciamentos dos parâmetros legais. Portanto, se pensarmos nos sujeitos que não estão presentes no ensino superior, os negros, os indígenas, a população economicamente desfavorecida, esta ausência tem estreita relação com a aplicação das normas legais, que ignoram e invizibilizam especificidades transformando-as as diferenças em desigualdades. Diante disso, na ausência de políticas e leis específicas, como &eacut e; o caso da lei de cotas, estas especificidades permanecem de fora, não adentram ao sistema de ensino superior.

Os silenciamentos e os ocultamentos são parte então da produção das concepções, de uma imagem ideal, das representações e dos significados do que seja, por exemplo, a graduação. Nessa produção simbólica os indígenas, os negros e as pessoas com baixa renda ficaram implicitamente incluídos como candidatos potenciais ao ingresso. Essa humanidade abstrata que a normativa legal desenha torna-se, na prática, uma espécie de sujeito impossível, cujo corpo não faze parte do cotidiano de possibilidades, de vivências e produções intelectuais; sujeitos de uma coletividade ativamente produzida como invisível; como nos lembra Boaventura de Souza Santos (2004) em sua teorizaç&atil de;o a respeito da sociologia das ausências. Para este autor o que não existe é, na verdade, “ativamente produzido como não existente, isto é, como alternativas não críveis ao que existe”.

De acordo com Santos (2008), esse contexto de invisibilidades forjadas colocam à sociedade e ao Estado algumas perguntas que são fortes e que, no contexto de debate sobre ações afirmativas, poderiam ser elaboradas da seguinte forma: qual é o papel da universidade e dos conhecimentos produzidos nesta instituição para a sociedade? Que sujeitos estão autorizados a frequentar o espaço acadêmico? Quais os brasileiros estão legitimados a acessar os espaço universitário e seus recursos altamente valorizados no mercado de trabalho? Qual é o papel da universidade na adesão ou na mudança do perfil do seu público? As respostas para estas questões fazem parte dos processos de produção dos tipos de instituições so ciais que estamos construindo ao longo do tempo. Estas respostas guardam fortes relações com o tipo de democracia que temos e que ainda não garante o direito de forma a produzir a equidade social no acesso ao ensino superior.

Quando refletimos sobre a impossibilidade de existência de sujeitos diversos no nível graduação, nas instituições públicas, somos convocados a questionar até que ponto o projeto de instituições como a Fundação João Pinheiro, e neste caso, a produção de Políticas do estado de Minas Gerais, tem sido um projeto excludente; por se pautar em uma concepção moderna de humanismo abstrato, que nega a diversidade de identidades. De acordo com Munanga (2006),

[...] Na lógica desse humanismo chamado essencialista (tal como se desenvolveu na filosofia a das Luzes), a humanidade define-se pela posse de uma identidade específica ou genérica, por exemplo, a que faz do homem um animal racional. [...] afirmam-se com clareza os valores do universalismo ou do humanismo abstrato e democrático, tal como foi concebido pela afirmação segundo a qual existe uma natureza comum a todos os homens, idêntica em cada um deles, em virtude da qual eles têm os mesmos direitos, quaisquer que sejam suas características distintivas (de idade, de sexo, de etnia, etc.) (MUNANGA, 2006, p.47).

Esse humanismo abstrato se sustenta ainda pela concepção da existência de uma democracia racial brasileira, onde existe um forte imaginário de que somos todos iguais, sem identidades diferenciadas, unidos por um elo cultural. Podemos dizer que na base da ideologia da democracia racial brasileira estão as ideias do cientista social, Gilberto Freyre, sobre as relações sociais que teriam imperado no Brasil escravocrata entre escravos e senhores. Fruto dessas relações, a mestiçagem teria dado origem a uma população estável e sem confl itos relevantes. Seu ponto ótimo em destaque é a mistura cultural, que teria diluídos as todas as diferenças existentes no contexto escravocrata. Essas ideias deram origem a um novo tipo de racismo no Brasil:

Não se trata de um racismo genocida, que leva a execução de um programa de eliminação física baseado em uma ideologia racista. Ao contrário, trata-se de um racismo universalista totalitário, que a todos impõe um modelo normativo de síntese do humano. É nesse sentido que é excluído aquele que não corresponde ao tipo humano idealizado. O racismo assim determinado apresenta-se, então, como um sistema homogeneizador através da mestiçagem inter-racial (D’ADESKY, 2001, p.82).

Ao teorizar sobre as ações do Movimento Negro em torno de uma educação antirracista Nilma Lino Gomes (2011) reflete que “a comunidade negra organizada não busca uma democracia abstrata, uma cidadania para poucos, mas, sim, uma igualdade e uma cidadania reais, que considerem o direito à diferença”. (p. 137). Isso se refere diretamente ao combate, pelo Movimento Negro, do mito da democracia racial, através do que a autora chama de uma pedagogia da diversidade (p.138) colocada em campo pelas ações afirmativas.

Portanto, é possível refletir que, ser uma pessoa negra, ou de origem socialmente desfavorecida, no ambiente acadêmico, poder trazer alguns contrastes, provocar certa instabilidade, desvelar certos comportamentos e hierarquias persistentes e naturalizadas; pode nos colocar diante do racismo que existe dentro das instituições sociais e que está em ativo diálogo com esse racismo universalista de que nos fala D’Adesky. No caso da população negra, a presença e a participação dentro da universidade pode evidenciar que, como diz Liv Sovik, no livro Aqui ninguém é Branco, “ser branco &eacu te; uma função social, não é uma cor exatamente”. Para Sovik (2009) “a cor é uma condição para essa função, a branquitude é um lugar de fala. É um espaço social ocupado por pessoas que cumprem certos requisitos de aparência (...), que dá uma expectativa de autoridade para a pessoa branca e isso se reforça na sociedade”. (p.56).

Pensar nestas afirmações em articulação com a defesa de uma pedagogia da diversidade, no bojo da luta por ação afirmativa no ensino superior significa justamente desnaturalizar nosso olhar sobre as presenças de pessoas brancas, de pessoas negras e das que são economicamente favorecidas, e que estão no ensino superior, local onde as pessoas brancas transitam com uma naturalidade que precisa ser estranhada, diante da composição racial e econômica bem diversa e desigual da sociedade brasileira.

De acordo com o senso do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, em Minas Gerais, na zona urbana, a população autodeclarada negra (pretos e pardos) é de 52,97%. Isso significa que para que possamos afirmar que as instituições espelham a sociedade esse quantitativo precisa estar representado em nossas instituições, por uma questão de justiça social e de justiça cognitiva também. Para Boaventura de Souza Santos (2005) a justiça cognitiva é feita quando se reconhece a existência e a contribuição de outros saberes e de outras possíveis leituras sobre a realidade. “Outras formas de conhecer a realidade qu e têm de ser trazidas para a universidade e, mais, obrigando-a a rever o próprio conhecimento científico sobre a sociedade brasileira, que é um conhecimento enviesado, em grande medida”. (p.5). A justiça cognitiva significa então a produção de outras narrativas sobre a sociedade, a partir dos próprios sujeitos que são excluídos dos processos de produção discursiva legitimada pela academia, e que se reproduz na sociedade. Além disso, a diversidade de formas de ver o mundo e de lógicas individuais podem contribuir com a produção de conhecimentos outros na geração das Políticas Públicas, neste caso específico.

Em um projeto político pedagógico, como o da Fundação João Pinheiro, que tem como objetivo formar profissionais para o ingresso na carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, uma política de cotas responde muito bem à sociedade sobre o tipo de estado que queremos construir, um estado inclusivo; e reponde ainda a um estado de coisas que podemos estar combatendo com a adoção de cotas, as práticas excludentes e as iniquidades sociais e raciais. Quando uma política diferencialista se faz presente e é entendida como um direito, a pluralidade étnico-racial e social começa a fazer parte e a ser visibilizadas, não só na universidade, mas em outras esferas sociais, pois os egressos das instituições irão compor os quadros do serviço público, ou fora dele. Com isso a sociedade só tem a ganhar porque, via ação afirmativa, se faz justiça social e cognitiva ao se democratizar o acesso à instituição pública.

Kelly Cristina Cândida de Souza é mestranda na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, membro do Programa Ações Afirmativas na UFMG e professora nas Redes Públicas de Ensino em Belo Horizonte e em Contagem.

* A fonte de referências, utilizada neste texto, sobre a Fundação João Pinheiro é o site da instituição, que pode ser consultado no seguinte endereço eletrônico: < http://www.eg.fjp.mg.gov.br/index.php/produtos-e-servicos-menu-produtos-e-servicos >

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