Larissa Diniz Goes: “O que aprendemos com a Rio 2016?”

23/08/2016 | Notícias

O clima pessimista que rondava a realização das Olimpíadas no Brasil não se confirmou ao final do evento. Durante meses a imprensa internacional e nacional se prestava ao papel de denunciar as muitas irregularidades nos processos de desapropriações, no uso de recursos públicos, nas obras e metas inacabadas às vésperas dos jogos. Aos cidadãos brasileiros restava endossar o complexo de vira-lata e esperar pelo pior.

Os dias que antecederam à abertura oficial foram marcados por apartamentos inacabados na Vila Olímpica, como foi o caso da delegação australiana e que repercutiu aos quatro cantos do mundo, houve também o episódio de atletas da Espanha assaltados no Rio de Janeiro durante o período de aclimatação, boatos de que o Estado Islâmico planejava ataques e operações da Polícia Federal em busca dos supostos “terroristas”.

Como se não bastasse todo o frenesi midiático e nas redes sociais, o plano de fundo era dramático: o país nas mãos do presidente interino golpista Michel Temer, a impunidade do deputado Eduardo Cunha e sua influência sobre o Congresso Nacional, mudanças drásticas e impopulares nos planos econômico e social que afetam ainda mais as classes mais baixas em período de crise. A situação da cidade maravilhosa acompanhava no mesmo ritmo os escândalos políticos nacionais, a instalação de painéis para isolar as comunidades periféricas cariocas chocou a muita gente, o processo de gentrificação e de maquiagens aos “45 do segundo tempo” foram alvo de polêmicas com motivos de sobra.

E em meio ao caos, veio a abertura dos Jogos, surpreendendo a todos porque era consenso que seria um fracasso. Embalados pelo “7x1” vivido na Copa do mundo, esperávamos algo morno e desconexo, uma aparição de Cláudia Leitte ao lado de artistas internacionais, meia dúzia de objetos de cena e pronto.

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Surpreendentemente, apesar de alguns problemas relacionados à forma de retratar os povos que formaram o Brasil, nuances de uma cultural racista e a hipocrisia de exaltar a favela dentro do Maracanã, enquanto lá fora as mesmas seguiam duramente massacradas, as manifestações positivas começaram a crescer nas redes sociais. Ao final da apresentação era visível a empolgação inédita com os Jogos em terras brazucas, mas o ar de desconfiança ainda pairava por aqui. É fato que poder ouvir as vaias abafadas e o coro de “Fora Temer” no estádio nos deu uma injeção de confiança, o resultado foi imediato, o interino mal discursou e cancelou sua participação na cerimônia de encerramento.

Então na manhã seguinte começavam as competições, veio a prata de Felipe Wu no tiro esportivo abrindo nossa participação olímpica, mas justamente no tiro. Logo a enxurrada de reflexões tomou conta das redes sociais, na cidade da bala perdida, nossa primeira medalha olímpica seria essa, irônico e a trágico ao mesmo tempo. Mas aí aconteceu algo emocionante: o ouro de Rafaela Silva no judô. Mulher, negra, lésbica, periférica, de projeto social, o triunfo das minorias num momento em que as políticas governamentais caminham em direção contrária.

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Do ouro de Rafaela em diante, os motores se aqueceram e as mulheres brasileiras se viram representadas pelas seleções femininas de vôlei, futebol, handball, ginástica artística. Ironicamente tomamos um balde de água fria com relação a expectativa de medalhas, triunfamos nos pódios da vela, maratona aquática, vôlei de praia masculino e judô, mas não importa, algo mudou em nós, o mundo está mudando e nosso barulho já incomoda. Queremos espaço e vamos batalhar por isso, esse legado nos valeu mais que tudo.

Sobre a participação masculina, tivemos a prata emocionante de Diego Hypólito, a prata de Arthur Zanetti, o bronze de Maicon Andrade, o Ouro de Thiago Braz, as três medalhas inéditas de Isaquías Queiroz, o Ouro de Alison e Bruno, o Ouro de Robson Conceição. Quero chamar a atenção agora para três situações: o bronze de Arthur Nory, o ouro do futebol masculino, o ouro do vôlei de quadra masculino.

Arthur Nory protagonizou episódios lamentáveis de racismo no ano passado e o tempo não foi suficiente para apagar essas marcas na memória dos brasileiros. Até quando práticas como o racismo, o machismo e a homofobia serão vistas como brincadeira em nossa sociedade? Inclusive, o ódio às minorias impactou também a nadadora Joana Maranhão nas redes sociais. O comportamento de Nory não é exclusivo, ele reflete o perfil do brasileiro, infelizmente. Enquanto o midiático Neymar entoava “vocês vão ter que me engolir” após o ouro inédito no futebol, o humilde líbero Serginho, dono de quatro medalhas olímpicas, dizia “A camisa foi agradecimento, não quero levar para casa, a camisa vai ficar para o povo brasileiro, alguém pega, faz leilão, para ajudar quem precisa. Não me sinto digno de deixá-la na minha casa. Eu sei o respeito que eles têm por mim, a gente tenta passar confiança, tranquilidade, não é só vir jogar".

De um lado, “Neymídia” arrotava arrogância após o ouro, do outro, o ex-vendedor de água sanitária coroava uma carreira brilhante. Mas Neymar também é um reflexo da nossa sociedade, nós o produzimos quando o tornamos num fetiche para o marketing. Contratos publicitários milionários, salários exorbitantes, personificação da seleção na figura do garoto de 24 anos. Não podemos deixar de mencionar que o atleta foi condenado a pagar R$ 188 milhões por sonegação de impostos, mas para a grande imprensa brasileira ele continua sendo um ídolo, um mito. Volto a questionar, até quando vamos idolatrar pessoas sem espírito de coletividade que marcam muitos gols diariamente contra o país? As medalhas não anulam a falta de caráter, assim como a ausência delas não anula as batalhas diárias dos atletas brasileiros.

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Falando em gols contra, o nadador estadunidense Ryan Lotche protagonizou um escândalo de dimensões olímpicas ao inventar o assalto no Rio de Janeiro. Para os pessimistas de plantão a ação da polícia brasileira foi um tapa de luvas, ainda mais porque na mesma semana prenderam o membro do COI, Patrick Hickey, suspeito de vender ingressos ilegais desde as Olimpíadas em Londres, em 2012. Vimos e mostramos ao mundo que nosso país é gigante pela própria natureza, temos mazelas assim como todos os lugares do planeta, mas chegou a hora de nossa gente bronzeada mostrar seu valor, e triunfamos.

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Mas nem tudo são louros, nos emocionamos com a despedida dos jogos e o clima nostálgico tomou conta de nós. Mal enxugamos as lágrimas de emoção e fomos bombardeados com as notícias de que o programa bolsa atleta será suspenso, que a CBF cogita extinguir a seleção permanente de futebol feminino, que os esgotos na enseada de Botafogo voltaram à ativa. Não tivemos atentados terroristas, não tivemos casos de Zika- com exceção dos frangos da goleira dos EUA Hope Solo, apelidados de Zika pela bem humorada torcida brasileira. Sabemos improvisar e receber pessoas e disso não temos mais dúvida, mas que nosso breve ufanismo mantenha acesa a chama da luta pela democracia, pelos programas sociais, pelo direito à cidade. Temos uma modalidade interna para vencer ainda em 2016: as eleições municipais.