Léo Heller: "Saneamento básico é um direito humano universal. O silêncio proposital da mudança do novo marco legal"

16/07/2020 | Nossas cidades

Brasil não precisa de um novo Marco Legal do Saneamento Básico; basta seguir o Plano Nacional de Saneamento Básico - Plansab e investir em políticas públicas, afirma o engenheiro

Patricia Fachin

Portal UNISINOS, 16/07/2020

A aprovação do Projeto de Lei 4.162/2019 do saneamento básico no Senado Federal no mês passado e sancionado pela Presidência da República ontem [15-07-2020], é resultado do lobby das grandes empresas privadas que atuam no setor e dos defensores de uma política econômica neoliberal que reivindicam a ausência do Estado na prestação de serviços básicos, segundo a avaliação do engenheiro civil e doutorado em Epidemiologia, Léo Heller. “Se compararmos a posição das várias entidades do setor que representam a sociedade civil, houve quase um consenso dessas entidades contrárias ao projeto. Apenas uma entidade – a representante das concessionárias privadas – apoiou o projeto e isso ficou muito nítido. (…) Esse foi o caldo de cultura que germinou essa lei aprovada pelo Senado recentemente”, afirma. 

Nesta entrevista, concedida por WhatsApp à IHU On-Line, o professor da Fiocruz explica as principais mudanças que o PL gera na legislação do saneamento básico, como a ampliação das empresas privadas na prestação de serviços. “O resultante disso pode ser uma maior participação privada, mas também uma seletividade das empresas privadas, as quais podem preferir atuar não nos municípios pequenos, de dez, vinte mil habitantes, no interior, mas nas grandes cidades, já que aí é mais provável que haja viabilidade econômica porque existe uma escala maior para garantir a lucratividade econômica dessas empresas”, adverte. 

Na avaliação dele, não havia necessidade de alterar o Marco Legal do Saneamento Básico, porque a universalização do saneamento “não depende só de lei”. “As leis já estão aí e existe um marco regulatório suficiente para assegurar a universalização. O que precisa é de políticas públicas envolvendo suas várias faces: financiamento, regulação, planejamento, participação da sociedade. A universalização já está desenhada – a ideia é que em 2033 tenhamos acesso praticamente universal à água, esgoto e drenagem – pelo Plano Nacional de Saneamento Básico - Plansab, editado em 2013”, explica.  

Heller lamenta ainda que a nova legislação não considere o saneamento como um direito humano universal. “Esta é a minha surpresa: estamos mudando uma lei e há um silêncio absoluto acerca dos direitos humanos e isso, para mim, é um sinalizador de que o que inspira a mudança da legislação não é o interesse das populações, mas o interesse das empresas”. E conclui: “Não se trata do caso de que os redatores e o relator da lei, Tasso Jereissati, não tenham sido avisados disso; não foi um esquecimento, foi uma omissão proposital. Para mim, é imperdoável que isso tenha ocorrido”.

Léo Heller é graduado em Engenharia Civil, mestre em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos e doutor em Epidemiologia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Realizou pós-doutorado na University of Oxford e foi professor titular do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da UFMG. Atualmente é pesquisador do Centro de Pesquisa René Rachou, da Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz. É Relator Especial do Direito Humano à Água e ao Esgotamento Sanitário, das Nações Unidas.

Confira entrevista.

IHU On-Line - Entre os diversos problemas estruturais do Brasil que ficaram ainda mais evidentes na crise pandêmica, destaca-se a não universalização do saneamento básico. Como o senhor analisa essa situação à luz da crise pandêmica?

Léo Heller – É importante sempre chamar a atenção para a necessidade de haver disponibilidade de água como uma barreira primária fundamental para a contenção da pandemia: água para higiene, sobretudo para lavagem de mãos. Em países como o nosso, em que o acesso à água não é universal, isso se transforma em um dos grandes entraves para a contenção da pandemia. Para uma lavagem de mãos apropriada, necessitamos de água e sabão. O sabão pode ser obtido individualmente, as pessoas compram ou recebem de entidades de caridade, mas o acesso à água quase sempre depende do Estado. Em áreas rurais, muitas vezes as pessoas conseguem acessar a água por conta própria, mas em áreas urbanas, sem a presença do Estado, é impossível obter água. Então, essa situação chama a atenção para a necessidade de o Estado estar presente, atendendo essas populações.

Acesso à água

Quem não tem água no Brasil? São essencialmente pessoas que vivem em assentamentos informais, vilas, favelas, pessoas que vivem em cidades pequenas – e quanto menor a cidade, menores são as chances de ter um bom abastecimento de água – e na zona rural, mas também em locais que vão além da própria residência. Estou me referindo às pessoas em situação de rua, por exemplo, em que o acesso à água é muito precário, e também me refiro às prisões, instituições de saúde, asilos de idosos de baixa renda. As pessoas em situação de rua, em geral, dependem de favores do comércio do centro das cidades, mas agora esses comércios fecharam e o acesso à água está muito reduzido. Por isso, é necessário que os prestadores de serviço de abastecimento de água tenham um olhar para essas populações e procurem protegê-las.

A precariedade de acesso à água agrava a situação e se transforma num fator de vulnerabilidade adicional, somando-se a outros fatores de vulnerabilidade, de forma que a possibilidade de expansão da pandemia nesses grupos é maior. Estamos vendo isto: a pandemia não é democrática e não afeta a todos de forma equivalente. Alguns estudos já revelam que quanto mais pobre a população, muito maior o risco de adoecer e de morrer de covid-19 por conta de outras comorbidades, mas também por falta de acesso à assistência à saúde, às UTIs, a respiradores. Então, a ausência de água gera riscos ampliados para essa população.

IHU On-Line - Que relações estabelece entre a falta de saneamento e a proliferação de epidemias no país? Que doenças estão associadas à falta de saneamento?

Léo Heller – Saneamento básico no Brasil é um conjunto de quatro componentes: abastecimento de água, esgotamento sanitário, manejo de resíduos sólidos e limpeza urbana, e drenagem de águas fluviais nas cidades. Cada um desses quatro componentes gera diferentes riscos à saúde humana e pode provocar, quando há precariedade no seu acesso, diferentes formas de enfermidades. Existem diversos estudos que evidenciam isso. A diarreia tem sido usada como um marcador importante para a ausência de saneamento. Ela é consequência de uma série de infecções que podem ser transmitidas pela qualidade da água inadequada, pela falta de acesso à quantidade de água adequada, pela disposição insuficiente de esgotos, pela limpeza urbana precária, a existência de lixões, disposição de resíduos incorreta ou por drenagem.

Estou destacando a diarreia, mas poderíamos falar em várias outras doenças, como doenças parasitárias, esquistossomose, as chamadas arboviroses, dengue, zika e chikungunya, que estão relacionadas aos quatro conjuntos do saneamento porque pressupõem água parada para a proliferação dos vetores. Então, existe um conjunto de doenças que são ligadas ao saneamento e, no Brasil, se fizermos uma superposição geográfica entre precariedade no acesso ao saneamento e essas doenças, fica muito nítido que quanto menos relevante é o acesso ao saneamento, mais essas doenças aparecem.

IHU On-Line - Qual sua avaliação geral do Projeto de Lei - PL nº 4162/19 do saneamento, aprovado no Senado? Que fatores levaram à aprovação do PL e como vê o debate que tem sido feito mais recentemente, impulsionado pela crise pandêmica, e que resultou na aprovação do PL?

Léo Heller – Ficou muito claro, para aqueles que acompanharam os bastidores e a forma como a mídia repercutiu ou promoveu a aprovação do PL, que ele foi resultante de duas forças importantes.

primeira delas é o grande lobby das empresas privadas que atuam no saneamento. Se compararmos a posição das várias entidades do setor que representam a sociedade civil, houve quase um consenso das entidades do setor contrárias ao projeto. Apenas uma entidade – a representante das concessionárias privadas – apoiou o projeto e isso ficou muito nítido.

outra força são os tradicionais políticos, economistas e formadores de opinião que se alinham com uma perspectiva neoliberal da economia – a atual linha do Ministério da Economia –, que defende a retirada do Estado na prestação dos serviços essenciais, a sua transferência para empresas, e um papel muito limitado do Estado na regulação dos serviços. Esse foi o caldo de cultura que germinou essa lei aprovada pelo Senado recentemente.

Mudanças

Alguns vendem essa lei como um novo Marco Regulatório para o saneamento, mas não se trata disso. O PL altera o Marco Regulatório vigente até então no país desde 2007 e altera também outras leis para viabilizar essa mudança. A nova lei é complexa e faz inúmeras referências a outras legislações, mas existem algumas mudanças que são mais centrais.

Uma delas é proibir que municípios façam acordos com o Estado por meio das companhias estaduais sem que haja concorrência. O que prevalece hoje – porque a lei ainda não foi sancionada – é o seguinte: se um município do RS decide que a Companhia Riograndense de Saneamento - Corsan deve operar seu sistema de água e esgoto e que esta é a melhor solução para o município por razões distintas, o município firma um contrato de programa com a Corsan, que é coberto pelo que a Constituição chama de relação interfederativa, e esta é uma decisão do prefeito, aprovada pela Câmara de Vereadores. É evidente que, quanto mais cuidadoso for o contrato em termos de estabelecer metas e definir que a Corsan deve investir e melhorar a qualidade do serviço, melhor.

O que a mudança da lei faz é abolir, proibir os contratos de programas. Se o município decide que a Corsan deve operar o seu sistema, ele não pode mais operar da forma que acabei de explicar, e sim abrir uma licitação, uma concorrência e publicar um edital. A Corsan pode apresentar uma proposta, assim como empresas privadas nacionais e internacionais, e quem vencer a licitação vai operar o sistema do município.

Então, o que a lei faz com essa mudança é colocar as empresas públicas estaduais no mesmo patamar das empresas privadas, tirando qualquer tipo de privilégio ou monopólio das empresas públicas. O resultante disso pode ser uma maior participação privada, mas também uma seletividade das empresas privadas, as quais podem preferir atuar não nos municípios pequenos, de dez, vinte mil habitantes, no interior, mas nas grandes cidades, já que aí é mais provável que haja viabilidade econômica porque existe uma escala maior para garantir a lucratividade econômica dessas empresas. Essa é uma das mudanças mais centrais no PL aprovado.

Atribuições da ANA

Outra mudança – existem várias avaliações sobre ela – é transferir ou alocar para a Agência Nacional de Águas - ANA a atribuição de estabelecer diretrizes nacionais para a regulação. O discurso é que a regulação no Brasil é muito dispersa, fragmentada e os reguladores são estaduais ou municipais ou intermunicipais, mas a queixa é que eles trabalham com diretrizes diferentes, padrões diferentes, e isso pode gerar iniquidades. Particularmente, acho que é um discurso correto e considero importante haver uma padronização na forma como o serviço se dá. A preocupação é que se transferirem muitos poderes para a ANA, ela poderá, inclusive, ter o poder de vetar a obtenção de recursos do governo federal caso uma reguladora que opere no município não se ajuste às suas diretrizes, ou seja, há a possibilidade de uma sanção e isso não me parece salutar. Nem sei se é constitucional. Essas são duas grandes mudanças.

Constitucionalidade das mudanças

Existem também muitas dúvidas e questionamentos sobre a constitucionalidade de várias dessas mudanças. Por isso, uma vez aprovada a lei, é provável que várias ações de inconstitucionalidade sejam apresentadas ao Supremo Tribunal Federal, o que vai gerar muita insegurança jurídica para os investidores privados atuarem no setor do saneamento no Brasil.

A lei permite um cenário de expansão da atuação das empresas privadas em água e esgoto, mas resíduos e drenagens foram deixados de lado nessa lógica. Na vida real, pode ser que essa expansão nem se dê, por conta da instabilidade jurídica e porque o Brasil vive e viverá mais fortemente uma crise econômica, a qual resultará na dificuldade de as pessoas pagarem as tarifas. Além disso, poderá aumentar a inadimplência e as empresas não terão espaço para aumento de tarifas, portanto o futuro está incerto, inclusive sobre a viabilidade de expansão da atuação privada como antecipado pelos promotores da lei.

IHU On-Line - Que tipo de política pública ou desenho de lei garantiria a universalização do acesso à água e esgoto a todos os brasileiros, especialmente nas regiões em que o acesso é mais restrito, como zonas rurais, periferias de grandes cidades e cidades do interior? O que foi deixado de fora do PL nesse sentido?

Léo Heller – Talvez não precisasse haver um novo PL. Talvez o próprio Marco Legal que hoje já existe na área de saneamento fosse suficiente. Em outras palavras, a universalização não depende só de lei; as leis já estão aí e existe um marco regulatório suficiente para assegurar a universalização. O que precisa é de políticas públicas envolvendo suas várias faces: financiamento, regulação, planejamento, participação da sociedade. A universalização já está desenhada – a ideia é que em 2033 tenhamos acesso praticamente universal à água, esgoto e drenagem – pelo Plano Nacional de Saneamento Básico - Plansab, editado em 2013. A observância do Plano é importante, porque ele tem metas e mecanismos, políticas, programas, diretrizes e estratégias, e por isso seria o caminho para se atingir a universalização.