Letícia Bartholo, Luis Paiva e Outros: "Auxílio emergencial, transição e futuro"

26/06/2020 | Políticas de igualdade

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Propostas de revisão de transferências são inexequíveis no curto prazo — Foto: Petr David Josek/AP Photo

Letícia Bartholo, Luis Paiva e Outros

Valor Econômico, 24/06/2020

Com a proximidade do fim do auxílio emergencial e a perspectiva de uma crise socioeconômica relativamente longa, surgem diversas propostas de remodelamento das transferências de renda assistenciais no Legislativo, entre especialistas e na opinião pública. É uma discussão sem dúvida urgente, pois, com a crise econômica e a falta de empregos, milhões de pessoas cairão na extrema pobreza assim que o auxílio emergencial deixar de ser pago.

Esse seria um problema grande o suficiente para exigir o maior dos nossos esforços, mas há um segundo aspecto: a própria recuperação econômica será mais lenta se essas milhões de pessoas reduzirem, brutal e imediatamente, seu consumo. Além de envolver tais questões imediatas, o debate é também importante por apontar os níveis de pobreza e desigualdade com os quais a sociedade brasileira está disposta a conviver daqui por diante.

As propostas de revisão das transferências variam muito, das mais focalizadas e preocupadas com a neutralidade fiscal às mais generosas e universalizantes. Não deixa de ser curioso, entretanto, que todas elas tenham um elemento em comum: o de serem inexequíveis no curto prazo. E, em política pública, só é solução o que responde a um problema no tempo devido.

Avaliemos brevemente três delas: a) a unificação de programas como o Bolsa Família, o Abono Salarial, o Seguro-Defeso e o Salário Família, o que resultaria em um orçamento da ordem de R$ 50 bilhões - montante tímido, diante das dificuldades hoje enfrentadas pelos adultos vulneráveis à pobreza; b) a instituição de uma renda mínima, a partir da repactuação de deduções do IRPF ou corte de salário de servidores públicos; e c) a criação de benefícios generosos, que impliquem gastos de cerca de 3% do PIB e englobem todas as famílias com renda per capita de até meio salário mínimo, além de um benefício universal para a infância.

Embora sejam propostas muito distintas (e de orçamentos potencialmente muito diferentes), nenhuma delas seria implementada sem que houvesse a aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), seja para integrar programas estabelecidos constitucionalmente, para rever a regra do teto de gastos ou ampliar a carga tributária. Ainda que uma dessas emendas fosse aprovada, seriam necessárias alterações legais, bem como a publicação de decretos e portarias, até que se chegasse ao momento de implementar o novo benefício.

Em um cenário irrealisticamente otimista, no qual houvesse consenso para a aprovação de uma PEC (o que não existe), a realização de alterações legais e a publicação de decretos e portarias em um período muito breve, ainda assim seria necessário um grande empreendimento para a implementação adequada do novo benefício. Afinal, é preciso mobilizar os atores envolvidos em sua operação, como os que compõem o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), responsável pelo cadastramento de quase 30 milhões de famílias de baixa renda em todo o Brasil, e coordenar as atribuições de diversos órgãos do próprio governo federal.

O trâmite das alterações legais, a organização do SUAS, o treinamento dos seus profissionais, a orientação da população, o estabelecimento de um cronograma de cadastramento organizado e a adequação da estrutura de pagamentos requerem tempo. Um tempo de que não dispomos. Um tempo no qual milhões de pessoas mergulharão na miséria. Ainda que o auxílio emergencial seja prorrogado por alguns meses, esse período adicional é insuficiente para que os desafios políticos e administrativos envolvidos na criação definitiva de um novo benefício sejam equacionados.

Ou seja, essas propostas, muito diferentes, têm em comum o fato de não responder ao imediatismo do problema. Em termos sintéticos, não são uma solução.

Pois então, o que fazer? Parar de discutir alternativas de proteção social para o futuro próximo? Obviamente, não. É preciso que essas discussões ocorram e que consensos sejam construídos, preferencialmente, como defendemos, em torno de um programa de transferência de renda que seja substantivamente mais generoso do que o Bolsa Família. No entanto, é fundamental reconhecer que fazer isto em alguns poucos meses é correr o sério risco de substituir um programa de reconhecido êxito como o Bolsa Família por algo mal desenhado e com implementação de baixa qualidade.

O leitor certamente notou o dilema. Precisamos de tempo para amadurecer propostas definitivas e, ao mesmo tempo, celeridade para evitar que milhões de pessoas entrem na pobreza nos próximos meses. Este dilema nos deixa com uma única solução factível: a criação de um programa temporário de transferência de renda, que tome a forma de uma transição a partir do auxílio emergencial e prepare o caminho em direção a um formato permanente.

Isso nos permitiria aliar urgência e necessidade de reflexão. Com duração de 12 ou 18 meses, o programa se basearia na redução paulatina dos valores dos benefícios do auxílio emergencial (ao longo de um período de seis ou oito meses) e sua transformação em um benefício mensal de no mínimo R$ 100 para cada indivíduo com renda familiar mensal de até meio salário mínimo per capita. Todas as pessoas dentro desse limite de renda teriam direito ao benefício, independentemente da idade ou do tipo de vínculo com o mercado de trabalho.

O benefício temporário não requereria a revisão da regra de teto de gastos, tampouco a unificação açodada de programas sociais. Ele pode compor o Orçamento de Guerra, enquanto estiver em vigor o estado de calamidade pública pela covid-19, inicialmente fixado para até 31/12/2020, mas que pode ser facilmente renovado. Caso não haja renovação, seria necessário abrir um crédito extraordinário previsto na própria regra de teto, o que se justifica por se tratar de despesa urgente e decorrente de consequências socioeconômicas que se estenderão além do período de vigência do decreto de calamidade pública.

Com isso, teríamos um pouco mais de tempo para definir um novo modelo estrutural de proteção social não contributiva, identificar suas fontes de custeio de forma responsável, estimar seus impactos na redução da pobreza e da desigualdade, realizar as alterações legais e planejar sua implementação. E, para que não se engane o leitor: mesmo com este prazo teremos um enorme desafio. Uma tarefa de grande dimensão, que só poderá ser realizada com boa dose de esforço e de respeito às capacidades estatais instaladas ao longo das últimas décadas.

Letícia Bartholo é socióloga e ex-secretária Nacional Adjunta de Renda de Cidadania (2012-2016).

Luis Henrique Paiva é sociólogo e ex-secretário Nacional de Renda de Cidadania (2012-2015).

Rodrigo Orair é economista e ex-diretor da Instituição Fiscal Independente do Senado Federal (2017-2019)

Pedro Ferreira de Souza é sociólogo, vencedor do Livro do Ano no Prêmio Jabuti (2019).