Luque, Silber, Luna e Zagha: "O desafio da desigualdade"

01/07/2020 | Políticas de igualdade

Um real forte decorrente de fluxos especulativos não é sinônimo de uma economia forte

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Luque, Silber, Luna e Zagha

Valor Econômico, 01/07/2020

Em 2018, 20% dos brasileiros mais ricos receberam 60% do PIB. Há dois países no mundo onde tamanha concentração de renda impera: São Tomé e Príncipe, e Suazilândia, ambos com populações abaixo de um milhão. Nos EUA a distribuição de renda piora há décadas, mas os 80% de lá ainda conseguem 60% do PIB; para 80% de brasileiros é só 40%. Uns poucos vivem com muito e muitos vivem com pouco. A epidemia assolando o país nos deu uma consciência mais aguda da desigualdade para milhões de brasileiros com poucos recursos, emprego informal, sem acesso a água, esgoto, transporte público, alimentação ou moradia adequada. As diferenças entres os que têm e os que não têm ficaram evidente até para os incrédulos.

A desigualdade tem raízes profundas. Nasceu com a ocupação do país, quando os nativos foram expulsos, escravizados e dizimados de maneira persistente para dar lugar a formação de latifúndios imensos através da concessão das sesmarias. Cinco séculos depois, 1,7% dos proprietários rurais controlam 90% da terra arável. Por quatro séculos perdurou o regime de trabalho escravo, sustentado por 4 milhões de africanos e seus descendentes, que constituiam a base da força de trabalho no Brasil.

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Ao longo dos séculos outras forças econômicas mantiveram a concentração de renda. A produção de açúcar, cacau, e café, bem como da mineração, estabeleceram estruturas produtivas baseadas em salários baixos, escravos índios e africanos, imigrantes japoneses e europeus, perpetuando ciclos de retorno alto para o capital e baixo para o trabalho. Posse da terra, escravidão, e repressão de movimentos sociais criaram uma elite que manteve seus privilégios através dos séculos.

A industrialização no século XIX foi um ponto de inflexão. Valorizou o trabalho e alterou esta tendência. Criou as condições para a formação de uma classe média e a urbanização do país. A Consolidação das Leis do Trabalho em 1943 fortaleceu os direitos do trabalho em relação ao capital. A mecanização e modernização da agricultura liberou mão de obra que migrou para as cidades. Até 1980, o Brasil teve um dos crescimentos mais rápidos do mundo.

E desde meados dos anos 1990 o país dedicou recursos crescentes ao combate da pobreza e a programas destinados à saúde, educação e redistribuição de renda. O salário real subiu 250%. Além de melhoras significativas nos indicadores de saúde, esperança de vida, escolaridade, e apesar de um crescimento modesto do PIB, estas medidas tiveram efeitos importantes. Em 20 anos a incidência da pobreza caiu de 57% a 18% em 2015, uma redução de uma rapidez sem igual no mundo. A participação no PIB dos 20% mais ricos também caiu de 64% para 57%.

Uma nação não se libera facilmente de seu passado. Desde 2015 os indicadores de distribuição pioraram, e a incidência da pobreza aumentou. A pandemia exacerbou a situação.

O desafio imediato é fazer face à pandemia que assola o país, proteger os vulneráveis. Além de medidas de saúde pública, são necessárias medidas de contenção do colapso da demanda, mantendo o poder aquisitivo da população e da oferta, mantendo empresas com vida. Salvar as contas públicas, ao custo de contrair a economia ainda mais, não é um objetivo factível e a implementação de políticas fiscais e monetárias mais expansivas do que vimos até agora são urgentes.

Em relação ao longo prazo, e para que o futuro não seja uma repetição das últimas décadas, o país precisa de dois projetos: um social, que ataque as desigualdades através de uma ampliação dos gastos sociais, fortalecimento e expansão de programas já existentes, e novos programas. Várias propostas foram feitas para um programa de renda básica e devem ser implementadas. O período 1994-2015 mostrou o poder destes programas.

Também são necessários investimentos maciços em projetos beneficiando as populações marginalizadas: água, saneamento, transporte público e educação e treinamento. Estes gastos têm efeitos positivos tanto sobre a desigualdade como sobre o crescimento. Igualmente importante é uma reforma tributária que ao mesmo tempo racionalize o sistema de tributação e reoriente a incidência em direção às classes de renda mais alta. O Brasil continua tributando pouco os ganhos do capital em comparação com rendimento do trabalho. Além de oneroso e ineficiente, o sistema de impostos indiretos também é viesado e recai mais pesadamente nas classes de renda mais baixa.

Mas reformas sociais sem crescimento econômico que as sustente têm fôlego curto. O segundo projeto deve restabelecer o crescimento sustentado do qual o país foi capaz nas décadas pre-1980. Variáveis chaves continuam amarradas a uma realidade de há muito ultrapassada. Depois de destruir a indústria com uma política de taxa de câmbio equivocada, não é adequado o Banco Central deixar a taxa de câmbio volátil, apreciando-se ao sabor dos fluxos financeiros.

Um real forte decorrente de fluxos especulativos não é sinônimo de uma economia forte. Ao contrário. O setor exportador é o único que pode escapar à crise de demanda interna atual e é pragmático protegê-lo. A depreciação recente criou uma oportunidade para um compromisso com uma taxa de câmbio mais realista que possa dar segurança aos exportadores e industriais e uma base para a abertura gradual da economia. Não podemos desperdiçar esta oportunidade. A taxa de juros no patamar atual reflete a incoerência das exorbitantes taxas praticadas no Brasil há décadas, estimulando fluxos especulativos, mas onerando os orçamentos públicos e inviabilizando o investimento.

Por último, as autoridades econômicas devem tomar consciência que austeridade fiscal não é instrumento para a ressurreição da economia. Desde 2015 se convenceram que ela levaria ao crescimento. Não veio em 2016, não veio em 2017, não veio em 2018, e tampouco veio em 2019. A espera por Godot continua.

Não foi a pandemia que interrompeu o que teria sido uma retomada. O que a pandemia fez foi enterrar de vez uma economia que, depois de despencar, mal conseguia um crescimento de 1% ao ano. Obviamente isto não é verdadeiro para todos os setores.

A agricultura, graças aos investimentos governamentais do passado, continuou prosperando. Devemos preservá-la, mas é fundamental fazer o mesmo com a indústria e modernizar nossa infraestrutura.

Desde que o Brasil parou em 1980 outros países mostraram que políticas econômicas fazem a diferença entre crescimento acelerado e estagnação, e que é possível alcançar os países avançados em uma geração ou duas. Poderá a pandemia nos fazer tomar consciência de que devemos mudar nossas políticas econômicas e reorientá-las ao crescimento

Carlos Luque é professor da FEA/ USP é professor da FEA/USP e presidente da Fipe.

Simão Silber é professor da FEA/USP.

Francisco Vidal Luna é professor da FEA/USP aposentado.

Roberto Zagha foi professor Assistente na FEA/USP nos anos 1970 e no Banco Mundial a partir de 1980, onde encerrou a carreira em 2012 como Secretário da Comissão sobre o Crescim.