Marta Arretche: “Desigualdade: o bom debate pede mais luz e menos calor”

20/10/2017 | Cultura política

Valor Econômico – 06/10/2017

Duas interpretações alimentam o debate sobre a trajetória da desigualdade de renda no Brasil. Uma – informada pelos trabalhos pioneiros de Marcelo Medeiros, Pedro Herculano e Fábio Ávila - sustenta que permaneceu elevada e estável, mesmo sob os governos petistas. A outra - ancorada nos trabalhos de Sergei Soares, Marcelo Neri e Ricardo Paes de Barros - argumenta que, a partir de 2001 e em particular sob os governos petistas, a desigualdade de renda não apenas caiu a taxas elevadas, mas superiores às de países que hoje estão entre os menos desiguais do mundo. Se aquele ritmo não fosse interrompido, poderíamos no longo prazo nos converter em um país civilizado.

Por paradoxal que possa parecer, ambas estão corretas. Divergem porque adotam conceitos e métodos distintos. A primeira - informada pela métrica de Thomas Piketty - observa a concentração da riqueza e enfatiza o peso dos rendimentos do 1% mais rico na distribuição total da renda. A segunda segue modelos econométricos desenvolvidos no século XX; ao se concentrar nos demais 99%, enfatiza os ganhos da metade inferior da distribuição da renda.

Do acerto das duas interpretações resulta que nossa escandalosa concentração de renda foi apenas marginalmente afetada pelos excepcionais ganhos de renda dos mais pobres. O gráfico acima mostra os ganhos relativos por vintis para o período 1984-2015, por governos, com base nos dados da Pnad (que sabidamente subestima a renda dos muito ricos). Sob a democracia (1985-2015), os estratos inferiores de renda obtiveram proporcionalmente mais do que os estratos superiores. A taxa de crescimento da renda dos extremamente pobres foi 94%, mas (excluído este estrato) a metade inferior da distribuição teve ganhos superiores a 140%.

Este é o resultado agregado da contribuição de diferentes governos. No governo de José Sarney, os extremamente pobres perderam renda real, ao passo que os ganhos relativos foram proporcionalmente maiores para os domicílios de maior renda. Foi o governo mais regressivo da Terceira República. Não por acaso 1989 é o ano do pico da desigualdade de renda desse período. No governo de Fernando Collor, os extremamente pobres também tiveram renda negativa, mas a metade superior da distribuição teve perdas relativas ainda maiores.

Nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, os extremamente pobres tiveram um pequeno ganho, mas a maioria dos domicílios apenas teve sua renda real protegida da inflação. Os maiores ganhos de renda relativa ocorreram sob os dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva, o que ajuda a explicar suas taxas de aprovação nas pesquisas de opinião. No governo Dilma Rousseff, a despeito da crise econômica, a taxa de crescimento da renda da metade inferior da distribuição foi superior a 10%.

tab14.jpgEstes foram ganhos relativos, contudo. Em termos absolutos, os mais ricos ganharam muito mais porque essas taxas de crescimento operaram sobre patamares de renda muito desiguais. No fim do governo Sarney, a renda domiciliar per capita dos domicílios do 1º vintil era de R$ 39, ao passo que a média do 20º vintil era reportada em R$ 6.035. Mesmo um ganho relativo de 200% na renda dos primeiros seria muito inferior a um ganho de menos de 50% do estrato mais rico da renda.

Ainda que limitados, os ganhos de renda dos mais pobres tiraram milhões de pessoas da pobreza e da extrema pobreza. Entretanto, o fato é que a desigualdade de renda é afetada por uma multiplicidade de fatores. Sua trajetória é resultado da combinação em um dado momento no tempo de um conjunto de políticas públicas com outros fatores exógenos, como, por exemplo, mudanças demográficas e comportamentos sociais. A queda nas taxas de fertilidade, cuja origem data dos anos 80, deixou de alimentar a fonte demográfica da abundante oferta de jovens pobres no mercado de trabalho. A entrada das mulheres no mercado de trabalho a partir dos anos 70 implicou que uma massa de indivíduos destituídos de renda passassem a ter um ganho monetário, reduzindo assim a desigualdade global da renda, mesmo que os ganhos das mulheres sejam mais baixos do que os dos homens. Causas remotas, cuja origem antecede o momento em que a desigualdade de renda cai, não podem ser ignoradas se pretendemos genuinamente entender quais mecanismos promovem este resultado.

Nosso interesse, contudo, se concentra sobre os fatores políticos que explicam as escolhas por políticas, porque apenas estas podem ser objeto de nossa ação deliberada. O fato é que a inclusão dos mais pobres esteve - e continuará a estar - no centro da agenda política da Terceira República. Na Assembleia Constituinte, a politização do problema da pobreza pelos setores progressistas durante a transição democrática produziu um temor mesmo entre os setores conservadores de que a democracia não seria sustentável se não comportasse políticas de combate à pobreza. Para além das oportunidades oferecidas pelo Regimento da Constituinte, esse temor explica a aprovação de uma "Constituição Cidadã" por uma assembleia em que os partidos de esquerda contavam com 48 cadeiras para um total de 559 constituintes.

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A Constituição Federal de 1988, por sua vez, converteu os beneficiários das políticas sociais, situados no piso e no meio da escala contínua da distribuição da renda, em categorias concentradas de eleitores interessados na expansão das políticas que os favorecem. Dado seu tamanho numérico, estes são decisivos para uma eleição majoritária. Dada a concentração da renda, a base eleitoral dos partidos conservadores não pode se restringir aos empregadores e à classe média. Por outro lado, dado o tamanho limitado do setor industrial urbano, os partidos de esquerda não podem mobilizar apenas os trabalhadores organizados e sindicalizados. Sob tais condições, no Brasil, partidos conservadores e de esquerda convergiram para atender as demandas dos eleitores dependentes dos programas de transferência de renda vinculados ao salário-mínimo, bem como das políticas universais de saúde e de educação. A competição política por esses eleitores favoreceu sua contínua expansão.

Moral da história: não é necessário que um partido de esquerda esteja no poder para que políticas redistributivas sejam adotadas. É suficiente que estes sejam eleitoralmente competitivos. Em contextos que combinam elevada participação eleitoral com elevada desigualdade econômica, partidos que vocalizem a desigualdade impelem partidos conservadores para a convergência em torno das demandas dos segmentos mais desfavorecidos. Podem não ser suficientes para subtrair a renda do 1% mais rico, mas não convém negligenciar seu potencial redistributivo. No Brasil, foram os partidos de esquerda que politizaram a desigualdade e foram mais bem-sucedidos em mobilizar o eleitorado do piso da distribuição. Sua estratégia de competição política inscreveu o tema da inclusão na agenda política brasileira. A ver o que o futuro nos reserva...

Marta Arretche é professora titular do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e diretora do Centro de Estudos da Metrópole.