Nélson Barbosa: “A crise fez voltar o debate sobre o papel do Estado”

26/04/2020 | Economia

Publicamos a seguir, trechos mais importantes da entrevista de Nelson Barbosa, economista e ex-ministro, ao site Sul21. A matéria foi publicada no dia 7 de abril de 2020, pelo jornalsita Luciano Velleda

 

Sul21A crise fez, inclusive, voltar o debate sobre o papel do Estado.

Nelson Barbosa: A única instituição que pode dar assistência, neste momento, é o governo. Então isso está recuperando o entendimento de que é preciso o papel do governo federal neste tipo de situação, de coordenação, de absorção do impacto inicial da crise. Para que você proteja o emprego e a renda, o governo vai emitir mais dívidas, aqui e em todo lugar do mundo, então nossa dívida pública vai crescer algo entre 5% e 10% do PIB. Depois essa dívida terá que ser enfrentada, mas isso num momento posterior à crise. Nesse momento, o governo vai emitir dívida como se ele estivesse, em nome da sociedade, tomando recursos emprestados do futuro para combater uma crise no presente. E depois, no futuro, quando a sociedade sair disso, voltar a capacidade produtiva e a trabalhar normalmente, aí pode se discutir de que maneira se vai enfrentar esse aumento de dívida, com rolagem (da dívida), com absorção monetária, com taxa de juros maior ou menor, mas isso num momento posterior. Nesse momento, a instituição que não quebra é o governo, e é por isso que o governo é o principal agente para amenizar a crise. Não quer dizer que o governo pode fazer tudo, mas ele pode absorver uma grande parte dessa crise, aliviando o impacto no setor privado.

 

Sul21É possível tirar algo positivo dessa crise grave e histórica?       

Nelson Barbosa: Acho que sim. As pessoas vão valorizar mais a colaboração, vão valorizar mais coisas esquecidas, como a interação, a empatia e a solidariedade, isso se a resposta do governo for numa direção, porque, se a resposta for mal feita, aí vira um vale tudo e a gente volta à idade da selva. Crises como essa, inevitavelmente, até pelo exemplo do seu combate, abrem espaço pra discussões sobre novas formas de atuação e novas necessidades que a sociedade têm. Por exemplo, acho que essa crise já gerou a discussão sobre o seguro de renda para todos, não só para quem tinha emprego, que nessa caso acessa o seguro desemprego, mas também para trabalhadores informais, que não têm uma fonte de renda garantida. Essa discussão da renda mínima já existe entre os economistas há muito tempo, ou seja, se todo mundo tem direito a uma renda mínima simplesmente porque existe. Então, estamos promovendo transferências emergenciais, mas essa discussão vai continuar depois.

Outra discussão é o papel do Banco Central. Já na crise de 2008, ficou claro que o Banco Central pode evitar a quebradeira do sistema financeiro dando liquidez para os bancos, só que não necessariamente essa liquidez dos bancos chega no setor produtivo. Então é preciso garantir crédito às empresas e às famílias, não só para os bancos. Há uma discussão no exterior de que o Banco Central tem que atuar diretamente, criando fundos para dar empréstimo direto às famílias e empresas com necessidades. Se os bancos não quiserem, que seja feito diretamente. É uma discussão que já vinha ocorrendo e tende a ganhar força agora.

E, por fim, penso que essa crise prova para o mundo inteiro a importância de ter um sistema público de saúde. Um sistema público bem aparelhado, com médicos suficientes, com sistema de prevenção, rede de distribuição de medicamentos e equipamentos necessários para combater esse tipo de problema. Acho que a saúde pública vai ganhar uma importância muito maior nas políticas públicas no mundo inteiro e no Brasil também.

 

Sul21O SUS estaria melhor preparado sem a emenda do teto de gastos, aprovada em 2016 durante o governo de Michel Temer?

Nelson Barbosa: Com certeza. Já há estudos que mostram que a emenda do teto de gastos, quando comparada a regra anterior, representou menos recursos para o SUS hoje, algo entre R$ 20 bilhões e R$ 30 bilhões. Antes dessa crise, eu e outros economistas já defendíamos que era necessário mudar esse teto de gastos. O governo deve ter uma meta de gastos sim, mas não a meta estabelecida pelo governo Temer, que é o congelamento do gasto no nível real verificado em 2016. Ao manter o gasto real congelado, significa que o gasto real por habitante está caindo, porque a população continua a subir. Então a saúde perdeu recurso per capita, a educação tem perdido recursos per capita, e os investimentos como um todo têm sido muito sacrificados. Acho que após essa crise, provavelmente vamos mudar a regra do teto de gastos para uma abordagem mais racional. Gasto com saúde e educação, assim como infraestrutura, beneficia a geração de hoje e a geração futura, então tem que ter metas próprias. O teto de gastos diminuiu a imunidade da economia brasileira diante de choques como estamos vendo hoje. Agora, o teto de gastos está temporariamente suspenso, o que foi uma medida acertada, o governo vai gastar o que for necessário, porque a crise tem risco de vida para milhões de brasileiros. Após a crise, se o governo quiser voltar ao teto de gastos, isso vai causar uma grande recessão, que vai gerar demandas via Congresso ou da própria sociedade para aperfeiçoar o teto de gastos.

 

Sul21Como o Brasil deve se preparar para o pós-crise?

Nelson Barbosa: Hoje estamos tendo as medidas emergenciais, como se tivéssemos tido uma inundação e estamos preocupados em fazer o alimento e a assistência chegar até a população afetada que, nesse caso, é a população de todo o Brasil. Só que há uma discussão entre economistas de que as medidas adotadas têm que ser temporárias e que a economia vai voltar ao normal talvez ano que vêm. Acho isso uma ilusão. O tamanho dessa crise, provavelmente, vai exigir medidas que durem mais de um ano. Então elas podem ser temporárias, mas isso não quer dizer que vão durar só um ano e que em 2021 tudo está de volta ao normal. O setor privado vai perder renda e aumentar seu endividamento, então, quando as coisas começarem a voltar ao normal, dificilmente o setor privado, com menos renda e mais dívida, vai ser capaz de sozinho levantar a economia brasileira.

Por isso, também serão necessárias políticas de reconstrução, além das políticas de auxílio agora. Políticas de investimento, de geração de emprego, para que a gente possa se recuperar mais rapidamente. Apostar que o setor privado vai se recuperar rapidamente, com o governo fazendo nada, é um dos motivos que levou à estagnação dos últimos três anos. Todo mundo esperando que o setor privado fosse puxar a recuperação sozinho e o setor privado não fez isso, porque não havia estímulo e nem razões objetivas para ele aumentar o seu investimento. Agora o mesmo vai se repetir depois dessa crise. Então vários países do mundo já estão pensando no pós-crise, com medidas de reconstrução, na Inglaterra do Boris Johnson, nos Estados Unidos do Donald Trump, que são governos de extrema-direita, mas nem por isso acham desnecessário uma política de reconstrução. Pelo contrário, tanto o Trump como o Jonhson já anunciaram que, na saída da crise, haverá um programa de aumento do investimento e geração de emprego para poder se recuperar mais rapidamente. No Brasil, a gente ainda está na ilusão de que isso não será preciso. Acho isso um problema, e isso vai ficar mais claro quando a economia voltar a funcionar.