Nelson Barbosa: “Quando o ajuste fiscal vira austericídio?”

25/08/2017 | Economia

266a.jpg

Folha S.Paulo – 21/07/2017

No início da década de 1930, o Reino Unido enfrentava várias dificuldades econômicas devido aos efeitos da crise financeira mundial iniciada em 1929.

Como sempre acontece nesses casos, houve uma corrida mundial pela liquidez, que, por sua vez, pressionou o sistema monetário internacional.

Como naquela época as principais economias do mundo adotavam o padrão-ouro —uma cotação fixa de suas moedas em ouro—, houve forte retirada de capitais do Reino Unido, reduzindo as reservas do Banco da Inglaterra.

Para defender a paridade de sua moeda, o governo britânico adotou uma série de medidas restritivas de modo a elevar seu resultado fiscal e diminuir a fuga de capitais.

Em 11 de setembro de 1931, a imprensa noticiou que haveria um corte nos salários das Forças Armadas. O "vazamento" provocou grande insatisfação na Marinha britânica, que culminou em ameaça de greve —o chamado "Motim de Invergordon" em 15 de setembro daquele ano.

A possibilidade de greve em uma instituição fundada em 1546 e símbolo do Império Britânico gerou um ataque especulativo à libra esterlina. Em 20 de setembro de 1931, o Reino Unido corretamente abandonou o padrão-ouro, que, na prática, era uma "gaiola de ouro", como apontou Keynes em um raro vídeo da época.

O receio de ser o próximo alvo de ataque especulativo fez o governo dos EUA responder à medida britânica elevando sua taxa básica de juros. Essa iniciativa acabou aprofundando a crise financeira iniciada em 1929, que se transformou na Grande Depressão da década de 1930.

Esse episódio ilustra o que ocorre quando um problema macroeconômico —fiscal ou monetário— se torna institucional: as medidas adotadas põem em risco o funcionamento da economia e geram uma corrida para o fundo, onde expectativas pessimistas se autoconfirmam e agravam a crise.

Ainda não chegamos a esse ponto, mas o risco existe.

Nesta semana, o governo federal elevou o deficit previsto para 2017 e 2018. Em tese, isso permitirá flexibilizar a política fiscal em até R$ 10 bilhões, pois hoje precisamos preservar investimentos e serviços públicos essenciais em vez de empurrar a economia mais para baixo.

A revisão das metas fiscais está na direção correta, mas os novos valores continuam irrealistas. Sua obtenção ainda depende de um volume elevado de receitas incertas e não recorrentes.

Caso isso não aconteça, continuaremos com cortes de gastos discricionários que ameaçam o funcionamento básico de nossos sistemas públicos de segurança, saúde e educação.

E vez de se agarrar a metas irrealistas de resultado, o governo deveria focar suas ações em metas factíveis e gradualistas de gasto, como acontece nas principais economias do mundo.

Na ausência de bom senso por parte da equipe econômica, caberia ao Congresso interromper a insensatez, mas nesta semana a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado aprovou um projeto de lei tornando crime a mudança da meta fiscal no segundo semestre do ano.

Os autores dessa proeza se esqueceram de proibir, também, a ocorrência de recessões, secas, enchentes, queda de preços de commodities e outros fatores exógenos que afetam a política fiscal.

O desconhecimento de alguns parlamentares sobre questões básicas do Orçamento público é preocupante. A marcha da insensatez continuará por algum tempo antes da mudança inevitável da política fiscal.

Nelson Barbosa é doutor em economia pela New School for Social Research, foi ministro da Fazenda e do Planejamento no governo Dilma.