O que o STF definiu sobre o aborto. Veja artigo da revista Carta Capital e entrevista com o ministro Luís Roberto Barroso

15/12/2016 | Políticas de igualdade

Carta Capital: “O STF descriminalizou o aborto? Entenda”

Redação Carta Capital – 30/11/2016

Em um dia no qual o País parou para acompanhar a tragédia com o avião da Chapecoense e no qual o Congresso aprovou a PEC do congelamento de gastos e desvirtuou o projeto anticorrupção, saiu do Supremo Tribunal Federal (STF) uma decisão sobre o aborto que pode provocar mudanças drásticas na discussão do tema.

A Câmara reagiu de forma imediata e o debate pode culminar com mudanças na Constituição envolvendo os direitos reprodutivos da mulher.

Qual caso foi julgado pelo STF?

Na noite de terça-feira 29, a primeira turma do STF, formada por Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Rosa Weber, Luiz Fux e Marco Aurélio Mello, se reuniu para julgar um caso envolvendo pessoas de Duque de Caxias (RJ) denunciadas pelo Ministério Público pela suposta prática do crime de aborto com o consentimento da gestante e formação de quadrilha.

Os envolvidos foram presos em flagrante, mas colocados em liberdade pelo juízo de primeiro grau. O Ministério Público recorreu da decisão e o Tribunal de Justiça do Rio determinou a prisão preventiva, mantida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Em agosto, Marco Aurélio Mello concedeu habeas corpus determinando a soltura dos acusados e Barroso pediu vistas do processo. Agora, a turma se reuniu para deliberar de forma definitiva sobre o tema.

Os envolvidos no caso foram soltos pelo STF?

Sim. Por unanimidade, os ministros entenderam que as prisões não se sustentam, porque não estão presentes os requisitos necessários para a decretação da prisão preventiva, porque os réus são primários, com bons antecedentes e com trabalho e residência fixa.

O que mais o STF decidiu?

Ao apresentar seu voto, Barroso acrescentou um segundo argumento em favor da soltura dos acusados. De acordo com o ministro, os artigos do Código Penal que tipificam o crime de aborto não são compatíveis com a Constituição de 1988.

Como o Código Penal é de 1940, anterior à Constituição, portanto, os artigos devem ser interpretados de forma a excluir a incidência de crime quando a interrupção voluntária da gravidez é realizada no primeiro trimestre da gestação.

Acompanharam o voto de Barroso Rosa Weber e Edson Fachin. Luiz Fux e Marco Aurélio Melo não se manifestaram sobre este argumento especificamente.

E qual foi a argumentação desse voto?

De acordo com Barroso, a vida potencial do feto é “evidentemente relevante”, mas a criminalização do aborto antes de concluído o primeiro trimestre de gestação viola diversos direitos fundamentais da mulher, além de não observar suficientemente o princípio da proporcionalidade.

Segundo o ministro, a criminalização antes do terceiro mês de gestação viola a autonomia da mulher, o direito à integridade física e psíquica, os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, a igualdade de gênero, além de provocar discriminação social e um impacto desproporcional da criminalização sobre as mulheres pobres.

Na prática, o que essa decisão significa? Ela descriminaliza o aborto?

Não. A decisão vale única e exclusivamente para o caso de Duque de Caxias examinado pelo STF. A manifestação de três ministros do Supremo em favor da descriminalização do aborto indica, entretanto, que, caso este tema seja levado ao plenário do STF em um debate de repercussão geral (válido para todas as situações semelhantes), é grande a possibilidade de as proibições ao aborto previstas no Código Penal serem derrubadas.

Atualmente, só são legais abortos envolvendo gestações que geram risco à mãe e as resultantes de estupro.

É verdade que a Câmara já reagiu à decisão?

Sim. Com 90% de homens em sua composição e dominada pelas bancadas mais conservadoras desde 1964, a Câmara reagiu de maneira quase instantânea à decisão do STF.

Ainda na terça-feira 29, o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), criou uma comissão especial que pode incluir na Constituição uma regra clara sobre aborto. “Sempre que o Supremo legislar, nós vamos deliberar sobre o assunto”, disse Maia.

Maia, que deve concorrer à reeleição como presidente da Câmara, empreitada na qual precisará das bancadas religiosas, tomou a decisão em meio à pressão dos deputados cristãos. “Revogar o Código Penal, como foi feito, é verdade, num caso concreto, trata-se de um grande atentado ao Estado de direito. O aborto é um crime abominável porque ceifa a vida de um inocente”, disse o líder do PV, Evandro Gussi (SP).

O deputado Edmar Arruda (PSD-PR) referiu-se à religião para condenar a decisão do STF. “Nós, que somos cristãos, nós que defendemos a família, nós que defendemos a vida, nós não concordamos com essa decisão”, afirmou.

E o que a Câmara pode decidir?

A comissão instalada vai discutir, na realidade, uma proposta sobre licença-maternidade – a PEC 58/11, do deputado Jorge Silva (PHS-ES) – mas pode acabar tornando mais rígida a legislação sobre interrupção de gravidez.

Cabe ao Legislativo elaborar e aprovar mudanças na Constituição, que para serem promulgadas necessitam de aprovação em dois turnos tanto na Câmara quanto no Senado, cada uma delas com pelo menos três quintos dos votos. Atualmente, a base do governo Michel Temer é tão grande que pode aprovar com facilidade mudanças na Constituição, como é o caso da PEC 241/55.

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'Decisão (sobre aborto) é para adotar políticas públicas', diz Barroso

Estadão - 01/12/2016

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Barroso, do STF, disse que criminalização do aborto é incompatível com a autonomia da mulher

Um dia depois de a 1.ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) entender que não é crime a interrupção da gravidez até o terceiro mês de gestação, o ministro Luís Roberto Barroso disse em entrevista que o colegiado não defendeu o aborto nem sua disseminação.

"É uma decisão para que se adotem políticas públicas melhores do que a criminalização para evitar o aborto", comentou. O entendimento valeu apenas para um caso específico - de funcionários e médicos de uma clínica de aborto em Duque de Caxias (RJ) -, mas pode servir como base para outras instâncias.

Na sua avaliação, a 1.ª Turma tomou uma decisão histórica?

Barroso - É uma decisão importante para deflagrar um debate que já não deveria mais ser adiado. Em uma democracia, nenhum tema é tabu. A decisão não defende o aborto nem propõe a disseminação do aborto. É uma decisão para que se adotem políticas públicas melhores do que a criminalização para evitar o aborto. O que a decisão pretende fazer é contribuir para o fim dos abortos clandestinos, que mutilam e levam à morte muitas mulheres.

Mutilam mulheres pobres, como o senhor destacou no voto...

Há duas questões importantes: uma, a questão da mulher em si, da condição feminina e da sua liberdade de viver as escolhas existenciais.

Além disso, a criminalização produz um impacto desastrosamente desproporcional sobre as mulheres pobres, porque elas não têm acesso à medicação adequada nem à informação. Portanto, a criminalização funciona no Brasil como mais um mecanismo de discriminação social."

Como o senhor vê a criação de uma comissão especial na Câmara para analisar o aborto, que foi anunciada depois da decisão da 1ª Turma?

Eu acho perfeitamente legítima (a criação). Não acho que qualquer pessoa seja a dona da verdade. Vejo sem nenhuma reserva o debate público a ser feito no Congresso Nacional, lá é o lugar para o debate público das questões nacionais por excelência.

Com a decisão da 1.ª Turma, o STF se coloca mais aberto e sensível a temas delicados, mesmo diante de uma suposta onda conservadora no País?

Os direitos fundamentais devem ser protegidos nos ambientes conservadores, liberais, progressistas. Obrigar pela via do direito penal uma mulher a manter uma gestação que não deseja, eu acho que isso viola claramente a Constituição. A decisão procura fazer com que cada pessoa possa viver a própria crença e convicção. Quem é contrário não apenas não precisa fazer (o aborto), como tem todo o direito de pregar a posição contrária. A única coisa que acho que não é razoável é criminalizar a posição divergente. Portanto, o Estado não deve tomar partido nessa briga. Ele deve permitir que cada um viva a própria crença.

O senhor também mencionou no seu voto o contexto internacional, observando que em muitos países democráticos e desenvolvidos o aborto até o terceiro mês é permitido. Esse novo entendimento da 1.ª Turma insere o Brasil em uma legislação mais atualizada?

Acho que sim. Nessa matéria estávamos em falta de sintonia com o mundo. Ter janelas para o mundo é sempre bom. A gente na vida deve ser janela, e não espelho. Olhando para o mundo, nós vamos ver experiências bem-sucedidas que não são as da criminalização.

E como o senhor lida com as críticas à decisão?

Quando você participa de um debate no espaço público, você não pode utilizar argumentos que excluam o outro do debate. Portanto, se você utiliza um argumento religioso, você exclui do debate quem não compartilha do mesmo sentimento religioso. Portanto, no espaço público, os argumentos de razão pública são argumentos laicos e tratam a todos com respeito e consideração.

Esse é quase um apelo às pessoas: ninguém precisa mudar de convicção, é só uma questão de ter respeito e tolerância pela convicção e pelas circunstâncias do outro.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo