Para enfrentar mundo pós-pandemia, cidades brasileiras precisam sanar problemas antigos

11/06/2020 | Nossas cidades

País enfrenta desigualdades históricas como a falta de saneamento básico e o gigantesco déficit de moradia, que dificultam a adoção de medidas mais eficientes no combate ao novo coronavírus

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O Globo 07/06/2020

Apesar dos exemplos simples e bem-sucedidos implementados ao redor do mundo, o Brasil tem pela frente um cenário muito mais complexo quando se trata das adaptações urbanas necessárias para lidar com a “nova normalidade” imposta pelo coronavírus. Segundo especialistas ouvidos pelo GLOBO, o país precisa vencer desafios históricos, como a falta de saneamento básico e o déficit habitacional, para tornar suas cidades, de fato, mais seguras e evitar novas crises sanitárias. Importar medidas nesse momento, afirmam, não resolverá o problema, já que a discrepância da qualidade de infraestrutura urbana brasileira é enorme se comparada à dos países mais ricos.

— Fala-se em aumentar calçadas, construir ciclovias, colocar um aporte extra de veículos no transporte público, mas o nosso drama é prover saneamento para milhões de brasileiros que não têm acesso a água limpa para seguir as premissas básicas que a OMS indica, como lavar as mãos com água e sabão por 20 segundos — afirma Carolina Pescatori, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de Brasília.

Carolina observa que a Argentina, por exemplo, chama a atenção porque, mesmo numa situação econômica mais complicada, o governo vem tomando ações imediatas e muito efetivas, diferentemente do Brasil.

— A gente percebe um número incompreensivelmente menor de mortos lá do que aqui, e isso tem muito a ver com uma ação estruturada e organizada do governo federal — comenta ela.

Professor da FAU/USP, João Sette Whitaker defende que a superação das desigualdades estruturais urbanas do Brasil é o caminho para se chegar a cidades mais seguras e sustentáveis, mas argumenta que as reformas, urgentes, precisam ser concomitantes.

— Claro que precisa fazer ciclovia, mas também precisa fazer casa e saneamento para todo mundo, criar corredores de ônibus, transporte de público de massa, fazer melhorias dos espaços urbanos e escolas. Não é uma coisa ou outra, ou uma coisa depois da outra, é fazer tudo ao mesmo tempo, estabelecendo prioridades e investimentos — observa. — Os países ricos podem melhorar seu rumo, recuperar o que eles já tinham. Aqui a gente não tem o que recuperar, porque nunca tivemos nada nesse sentido. Precisamos começar lá atrás, e urgentemente.

Cidades mais inclusivas

Dados do Ministério do Desenvolvimento Regional apontam que quase metade da população brasileira não tem acesso à rede de esgoto — na região Norte essa taxa sobe para 89,5%, e no Nordeste, 72% —, enquanto 16,4% não têm água encanada. Levantamento feito pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) em parceria com a Fundação Getulio Vargas (FGV) revela também que, em 2017, o país bateu recorde de carência de moradia, um déficit de 7,78 milhões de unidades habitacionais.

Além disso, o presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR), Luciano Guimarães, afirma que há no país mais de 5 milhões de domicílios em áreas que apresentam condições precárias para a habitação. Segundo o arquiteto e urbanista, pelas estimativas foram mais de 2 milhões de residências construídas sem que estivessem dentro um planejamento de mobilidade e localização, ou que tivessem garantia de saúde, de segurança e de conforto.

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Guimarães alerta que, para adequar as cidades para serem mais seguras, é preciso que elas sejam também mais inclusivas e que os planejamentos de moradia e urbano passem a ser pensados como políticas de Estado.

— Soluções definitivas, só o tempo dirá. Agora, é difícil transformar, de uma hora para outra, espaços que hoje congregam mais de 60% da população em espaços saudáveis sem investir de forma maciça principalmente no saneamento, na tecnologia, na informação e na educação das pessoas. É preciso pensar na gestão de governo nos diversos níveis comprometida com o planejamento urbano, ambiental e construído com a participação da sociedade

O presidente do CAU/BR continua, lembrando que a pandemia mostrou a importância de ter cidades “saudáveis e inclusivas para todas as comunidades e territórios”:

— Não é só o bairro da periferia que foi atingido, não é só a população que não tem saneamento. Foram todos os bairros em todas as cidades brasileiras, praticamente. Ou transformamos nossas cidades em cidades saudáveis para todos, ou vamos correr o risco de não ter cidade saudável para ninguém.

A oficial nacional do ONU-Habitat para o Brasil, Rayne Ferretti Moraes, explica que as medidas devem ser pensadas pelos órgãos oficiais considerando as diferenças socioeconômicas das regiões das cidades brasileiras, e os impactos a médio e longo prazo.

— Cidades que têm uma maior parcela da população vivendo em assentamentos precários, onde muitas vezes o acesso à água potável é irregular, ou mesmo inexistente, as condições de moradia são inadequadas e os serviços de saúde são deficientes, terão de implementar intervenções mais estratégicas de enfrentamento para vencer a pandemia. E, neste momento, o principal desafio dos governos é criar planos transparentes e orientados pelo conhecimento científico para guiar as medidas.

Segundo Tamara Egler, professora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano (IPPUR) da UFRJ, a crise territorial que acompanha a crise sanitária do coronavírus deverá ainda intensificar o processo de desmetropolização que está em curso, com a migração da classe média para cidades de médio porte, consideradas mais seguras. Os grandes centros, por sua vez, afirma a especialista, sofrerão cada vez mais um processo de empobrecimento.

— É um processo de periferização da classe média — explica. — No Rio, quem pode está se mudando para a região serrana, mas as pessoas mais pobres vão continuar na capital.

Paola Berestein, que é coordenadora do Laboratório Urbano da Universidade Federal da Bahia, lembra que as maiores intervenções urbanas do Brasil — conhecidas como “bota-abaixo”, a exemplo da que foi feita no Rio pelo prefeito Pereira Passos no início dos anos 1900 — tiveram motivações sanitárias e foram propostas por higienistas como uma “limpeza física” e “embelezadora das cidades”. Na prática, ela diz, eram sobretudo uma “limpeza social”, visando aqueles que viviam em espaços urbanos mais vulneráveis.

É uma questão de romper com a lógica da urbanização brasileira, fundamentada na concentração dos investimentos públicos em bairros mais ricos, afirma João Sette Whitaker:

— Se você não inverter radicalmente a ordem de prioridades, nada será resolvido.