Paulo Kliass: “Lições Argentinas”

14/08/2019 | Economia
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Créditos da foto: 6 de junho de 2019 - Protestos em Buenos Aires: repúdio à apologia da tortura e da discriminação (Agustin Marcarian/Reuters)

Carta Maior- 13/08/2019

Os resultados do processo eleitoral ocorrido na Argentina no domingo passado provocaram efeitos imediatos sobre o cenário político e econômico deste lado da fronteira. Existe muito de História, de estórias e de anedotas envolvendo a evolução da conjuntura em ambos os países. São variações que vão desde a admiração recíproca por razões diversas até rivalidades compreensíveis também entre nações vizinhas. Vargas, Perón. Justicialismo, trabalhismo. Ciclos de ditaduras militares. Pelé, Maradona. Plano Cruzado, Plano Austral. Era dos Kirchner, era Lula/Dilma. E também o famoso efeito Orloff, do “eu sou você amanhã”.

As regras eleitorais na Argentina preveem a realização de prévias entre todos os partidos e/ou candidatos interessados em participar do pleito. Assim, cada uma das listas concorrentes deve ultrapassar a cláusula de barreira de 1,5% do total de votos para estar presente na disputa que ocorrerá em 27 de outubro. O comparecimento às urnas durante as prévias é aberto a toda a população e costuma operar como um termômetro indicativo das intenções de voto para a próxima etapa.

A vitória da chapa que tem Alberto Fernández e Cristina Kirchner como candidatos a presidente e vice, respectivamente, superou aquela protagonizada por Mauricio Macri, atual presidente e candidato à reeleição. Ainda que o resultado das prévias não seja garantia de vitória segura também daqui a dois meses, o fato é que boa parte dos analistas políticos consideram bastante difícil que a diferença (49% a 33%) nas apurações deste domingo seja revertida em tão curto espaço de tempo.

Vitória de Fernández/Kirchner.

A derrota de Macri tem o significado de um claro voto de desconfiança e descontentamento por parte da população que o elegeu em 2015, após um período de 12 anos do chamado kirchnerismo no poder. Por outro lado, Cristina e seu grupo mais próximo foram habilidosos e amplos o suficiente para perceber que precisavam compor a chapa, de forma a evitar um simples plebiscito a respeito de sua volta. Assim ofereceu a cabeça de chapa a Fernández, que ocupou por diversas vezes cargos de ministro em seu gabinete e de seu falecido marido.

As urnas demonstraram que a opção por uma política econômica de inspiração neoliberal levada a cabo pelo então candidato Macri, apoiado abertamente pelo financismo em 2015, não ofereceu nenhuma boa notícia para a maioria do povo argentino. Muito pelo contrário. A receita da austeridade terminou por aprofundar a crise.

A tabela abaixo nos oferece um pouco de pistas para a razão de um fenômeno de queda tão abrupta da popularidade do candidato liberal que se apresentava como o coveiro definitivo de todo e qualquer traço do peronismo. Na verdade, por trás da roupagem do bom moço admirado pelo establishment financeiro, Macri reeditou na terra de los hermanos o velho e surrado cardápio do neoliberalismo. Austeridade fiscal, juros altos e redução da presença do Estado na economia. O resultado foi um aprofundamento das condições gerais da economia e de vida do povo argentino.

Ao longo do mandato de Macri todos os indicadores pioraram. A inflação mais do que dobrou, saindo da casa dos 25% ao ano para chegar a 56%. A taxa oficial de juros estava em 38% antes de sua posse e agora atingiu 60%. A taxa de câmbio explodiu e sofreu enorme desvalorização - saiu de 15 pesos/dólar e chegou a 46 antes dos resultados da eleição.

Além disso, como que por ironia trágica, o próprio “risco país” aumentou no período. Ou seja, o candidato apreciado e recomendado pelo financismo local e internacional fez a lição de casa e, ainda assim, o risco para o investidor estrangeiro aumento de 487 para 900 pontos - ou seja, quase dobrou em quatro anos. Acompanhando essa evolução, a dívida externa argentina também cresceu mais de 60%, saindo de US$ 167 bi e atingindo US$ 275 bi.

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Pelo lado social, a dimensão da política econômica da austeridade foi implacável com a maioria da população do país vizinho. O poder de compra do salário mínimo medido em dólares caiu mais da metade, saindo de 580 para 279. O desemprego oficial medido pelo INDEC aumentou também em 50%, saindo de 7% para 10%. Os índices de pobreza e indigência também subiram durante o mandato de Macri, ainda que tenham atingido valores bem inferiores à triste realidade social e econômica de nossas terras.

Finalmente vale como registro da piora qualidade de vida a observação da queda expressiva no comportamento de dois bens que são bastante simbólicos do modo de vida dos argentinos. O consumo de leite caiu quase 40% e o consumo de carne foi reduzido em aproximadamente 20%.

Especulação criminosa no dia seguinte.

No dia seguinte ao anúncio da vitória de Fernández, o próprio “mercado” financeiro começou o conhecido trabalho de especulação irresponsável, com o objetivo de apostar todas as suas fichas na política do “quanto pior, melhor.” Assim, começou a criação da narrativa catastrofista em torno dos riscos do retorno do suposto “populismo” e dos “irresponsáveis fiscalmente” à Casa Rosada. A chantagem protagonizada por meio da manipulação das variáveis da política econômica não esperou nem algumas horas para ter início. Desde a abertura das operações de natureza financeira na manhã de segunda-feira, as transações apontavam para a desvalorização artificial e súbita do peso argentino na relação com o dólar norte-americano. Ocorre que, ao contrário do Brasil, a Argentina ainda permanece bastante dependente do capital estrangeiro, em razão da dívida externa relativamente elevada. 

A fim de evitar as consequências nefastas dessa aventura especulativa sobre o conjunto dos atores da sociedade argentina, a equipe de Macri se viu obrigada a elevar a taxa de juros, com o objetivo de reduzir a revoada de capital para o exterior. Aliás, nos já vimos esse enredo por aqui em diversos momentos de nossa História. Em 2002, por exemplo, com a subida das intenções de voto de Lula, o mercado financeiro também apostou numa possível virada a favor do candidato do establishment, José Serra. Para isso, foi construída também uma narrativa de que o Brasil iria se quebrar caso o PT ganhasse as eleições e a insuflação do temor à catástrofe iminente. E o recurso à especulação com o dólar também promoveu uma desvalorização artificial, levando a taxa de câmbio atingir quase R$ 4/US$ entre o primeiro e segundo turnos de outubro daquele ano. A especulação promoveu uma piora de 80% na taxa ente março e as eleições. Uma loucura!

A Argentina infelizmente deve sofrer processo semelhante. Lula divulgou a famosa “Carta ao Povo Brasileiro” em junho de 2002, na tentativa de acalmar os humores do grande capital. O problema é que a equipe no comando da economia até a posse do novo governo na Argentina é comandada por Macri, que perdeu as prévias. O mesmo aconteceu naquele ano no Brasil, com os tucanos no poder e apoiando Serra contra Lula.

Assim, o cenário que deve se aguardar para o país vizinho não é dos mais alentadores, do ponto de vista da política econômica. Macri vai usar de todos os recursos para ampliar esse quadro catastrofista e jogar na tentativa de usar o fantasma do retorno dos peronistas ao poder. Difícil imaginar que uma sociedade que tende a reforçar os elementos emocionais na condução e na disputa do jogo político consiga superar tal instabilidade e que os atores envolvidos aceitem um jogo, digamos, civilizado.

Fala, Bolsonaro!

O recado das urnas foi claro. A maioria da sociedade deseja mudança, quer a saída de Macri e propõe a volta dos atores da era K. Os interesses do financismo e de parte da oligarquia local, por seu turno, também deixaram claro que não aceitam esse retorno. E avisam que farão de tudo, e mais um pouco, para evitar a vitória de Fernández/Kirchner em outubro próximo. A irresponsabilidade do capital é internacional.

Os próximos dois meses serão de elevada tensão e incerteza. É bem possível os emissários de Macri já tenham percebido que a pretensa ajudinha de Bolsonaro pode se converter em “abraço de afogado”. A imagem do capitão é muito desgastada também lá fora. Quanto mais ele se meter na disputa, mais votos ele deve tirar de Macri e ajudar a chapa oposicionista. Assim, talvez devêssemos incentivá-lo em suas saidinhas tresloucadas: “Fala, Bolsonaro!”.

Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal