Philip Alston: "O coronavírus evidenciou outra pandemia que beneficia os ricos: a da pobreza"

16/07/2020 | Políticas de igualdade

Philip Alston

Portal Unisinos, 16/07/2020 

“A pandemia de pobreza durará muito mais que o coronavírus, enquanto os governos não começarem a levar a sério o direito de todos a um padrão de vida adequado. Para isso, precisam parar de se esconder atrás da miserável linha de subsistência estabelecida pelo Banco Mundial e abandonar o triunfalismo com o qual falam do iminente fim da pobreza”, escreve Philip Alston, ex-relator especial da ONU sobre extrema pobreza e direitos humanos, titular da cátedra John Norton Pomeroy de Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Nova York, onde preside o Centro de Direitos Humanos e Justiça Global, em artigo publicado por El Diario, 14-07-2020. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

De repente, a pobreza se tornou notícia. É impossível não ver o impacto absolutamente desproporcional que o coronavírus está causando nas pessoas pobres e marginalizadas. Centenas de milhões de pessoas condenadas ao desemprego e à miséria. Com um apoio insuficiente na maioria dos casos, aumentam a fome, a falta de moradia e os trabalhos perigosos.

Como é que a história mudou da noite para o dia? Há apenas alguns meses, muitos comemoraram o fim iminente da pobreza e agora o problema está em toda parte. A explicação é simples: os líderes mundiais, filantropos e especialistas passaram 10 anos com uma narrativa enganosamente otimista sobre o progresso na luta global contra a pobreza. Diziam que era uma das “maiores realizações da humanidade”, uma façanha "inédita na história da humanidade", e uma conquista "sem precedentes". Mas a história de êxito sempre foi muito enganosa.

Como mostro no meu relatório final como relator especial da Organização das Nações Unidas sobre extrema pobreza e direitos humanos, quase todas essas contas se baseiam na linha internacional de pobreza do Banco Mundial de 1,9 dólares por dia. Essa medição mal compreendida e defeituosa, pinta um panorama erroneamente positivo e é responsável pela indevida e perigosa complacência com o status quo.

Segundo essa medida, o número de pessoas na "pobreza extrema" caiu de 1,9 bilhão, em 1990, para 736 milhões, em 2015. Mas uma redução assim tão abrupta somente se consegue quando o ponto de partida é escandalosamente pouco ambicioso. A quantia de 1,9 dólares por dia serve apenas para garantir uma subsistência miserável. Em muitos países, nem sequer cobre o custo de alimentos e da moradia, não fornece informações sobre a pobreza entre mulheres e pessoas frequentemente excluídas de pesquisas oficiais, como refugiados e trabalhadores migrantes, e grande parte da diminuição anunciada na pobreza mundial se deve ao aumento da renda em apenas um país: a China.

Ter um panorama pouco realista do progresso na luta contra a pobreza tem causado consequências terríveis.

Em primeiro lugar, porque esse suposto êxito foi atribuído ao crescimento econômico, justificando, assim, programas pró-crescimento caracterizados por desregulamentação, privatização, redução de impostos para empresas e ricos, livre circulação de capitais e excessiva proteção para os investimentos. É o álibi com o que me deparei repetidamente ao longo dos seis anos que passei dentro da ONU pesquisando as medidas dos diferentes governos contra a pobreza. Tudo, de incentivos fiscais aos super-ricos aos destrutivos megaprojetos de extração de riqueza no Sul global, justificava-se como formas de reduzir a pobreza, quando na verdade não estavam fazendo nada disso.

Apresentar os interesses dos ricos como o melhor caminho para mitigar a pobreza mudou radicalmente o contrato social, redefinindo o bem público como aquele que ajuda os ricos a ficarem mais ricos.

Em segundo lugar, esse relato de progresso foi utilizado para acobertar os terríveis resultados que essa perversão das políticas pró-crescimento provocou muitas vezes. Muitos dos países que conseguiram grandes aumentos em seu PIB também viram uma explosão na desigualdade e um aumento na fome. Em muitos casos, o crescimento veio com custos inacessíveis em saúde e moradia, com diferenças raciais persistentes na distribuição da riqueza, com a proliferação de empregos onde não se pagam salários dignos, com o desmantelamento das redes de seguridade social e com a devastação do meio ambiente. Todos esses fenômenos estavam diretamente relacionados às políticas neoliberais, mas nunca foram incluídos no relato heroico da luta contra a pobreza.

Em terceiro lugar, o quadro otimista da medida de pobreza mais divulgado pelo Banco Mundial fomentou a complacência. Milhares de milhões de pessoas enfrentam um mundo de poucas oportunidades e mortes evitáveis, pobres demais para usufruir dos direitos humanos básicos. Cerca de metade da população mundial vive com menos de 5,50 dólares por dia. São 3,4 bilhões de pessoas, um número que pouco diminuiu a partir de 1990. Nem mesmo os países de alta renda e com recursos naturais abundantes conseguiram reduzir seriamente as taxas de pobreza.

coronavírus não fez mais do que evidenciar uma pandemia de pobreza que vinha de antes. A Covid-19 chegou em um mundo em que crescia a pobreza, a desigualdade extrema e o desprezo pela vida humana. Um mundo em que leis e políticas econômicas são concebidas para criar e manter a riqueza dos poderosos, não para acabar com a pobreza. Esta é a escolha política que se fez.

Em nenhum lugar é mais evidente do que nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas que, a menos que haja um ajuste drástico, claramente não serão alcançados. Ao invés de imaginar os Estados como os agentes centrais da mudança e de se basear em políticas para redistribuir riqueza e combater a precariedade, a estrutura dos ODS coloca uma imensa e equivocada fé no setor privado e no crescimento da economia.

A pandemia de pobreza durará muito mais que o coronavírus, enquanto os governos não começarem a levar a sério o direito de todos a um padrão de vida adequado. Para isso, precisam parar de se esconder atrás da miserável linha de subsistência estabelecida pelo Banco Mundial e abandonar o triunfalismo com o qual falam do iminente fim da pobreza. É imprescindível uma transformação social e econômica mais profunda para evitar uma catástrofe climática, para alcançar uma proteção social universal, para redistribuir riqueza com verdadeira justiça fiscal e, finalmente, para avançar verdadeiramente para o fim da pobreza.

Philip Alston é advogado e relator das Nações Unidas para a pobreza extrema e os direitos humanos