Renato Janine: “A cota é um elemento forte de justiça”

18/08/2017 | Políticas de igualdade

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Implementadas na educação brasileira há mais de 10 anos, as cotas sociais e étnico-raciais foram aprovadas neste ano por duas das instituições mais respeitadas do país. Em julho, após anos de pressão do Movimento Negro, o Conselho Universitário da USP aprovou a instituição de cotas  de forma escalonada, fazendo com que, no ano de 2021, 50% das vagas sejam reservadas aos cotistas. Pouco antes, em março, a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) implantou um sistema semelhante, que valerá aos vestibulandos a partir do ano de 2019.

Na avaliação do filósofo e ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro, "a cota é um elemento forte de justiça".

Para o professor aposentado de Ética e Filosofia da USP, estabelecer cotas para camadas mais pobres da sociedade corrige um erro histórico do Brasil.

“A sociedade brasileira foi construída para promover a desigualdade. Desde a chegada dos portugueses, a colonização dos índios e, posteriormente, dos negros. Essa ideologia é tão forte dentro das pessoas que acaba não sendo passível de convertê-las para o lado racional. O pensamento é tão rigoroso que você não consegue explicar à pessoa que os filhos dela não perderão vagas nas universidades pela adoção de cotas”, diz Janine.

Ele observa que a verdadeira meritocracia deve igualar não só o ponto de chegada, mas também o ponto de partida. “Esse é o problema do Brasil: se confunde o verdadeiro mérito com o falso mérito. Se os cotistas hoje contam com uma nota de corte menor em um vestibular, é porque eles precisaram de mais garra e mais mérito que os não cotistas para alcançar um resultado. As pessoas têm de levar em consideração que estão lidando com alunos que foram tratados de forma desigual pela sociedade”.

Confira abaixo a entrevista na íntegra:

UOL: Além de ter aumentado o número de negros, na sua opinião, quais foram as principais mudanças no Ensino Superior com a adoção das cotas pelas grandes universidades públicas?

Renato Janine Ribeiro: Eu vou aproveitar a pergunta para explicar esse foco: as cotas são essencialmente para egressos de escola pública nas instituições de ensino superior. Basicamente, metades das vagas na graduação são destinadas a alunos que cursaram escola pública e, dessas vagas, há outra divisão direcionada exclusivamente aos negros, pardos e indígenas. Mas, no imaginário social, ela foi transformada em apenas uma cota étnica.

Os alunos de escola pública são, geralmente, mais pobres e, por conta disso, eles não conseguem vagas no ensino superior público. Ou seja, há uma troca de valores em que os pais pagam a escola dos alunos com melhores condições durante a educação básica e, depois, esse aluno tem mais chance de acesso ao ensino superior gratuito do que outro aluno que, ao cursar o ensino fundamental público por ter menos condições econômicas, necessita cursar o ensino superior público. É uma inversão.

UOL: As cotas estão dando certo?

Tem muita informação diversificada, não há nada estatístico para indicar se esse sucesso realmente acontece. Porém, o ponto a considerar é que cada vez mais vemos notícias de alunos cotistas que se formaram em 1º lugar em seu curso ou de alunos cotistas que se destacaram em algum âmbito estudantil. Nesse quesito, o mais importante é considerar o ponto de partida.

Eu sou defensor da ideia do mérito. Mas do verdadeiro mérito, aquele que leva em conta o ponto de chegada e o ponto de partida de cada um. Se você tem um ponto de partida diferente e mais vantajoso do que de outra pessoa, esteja competindo com a mesma e, ao final, você ganha dela, você não está contando com o verdadeiro mérito.

Esse é o problema do Brasil: se confunde o verdadeiro mérito com o falso mérito. Se os cotistas hoje contam com uma nota de corte menor em um vestibular, é porque eles precisaram de mais garra e mais mérito que os não cotistas para alcançar um resultado. As pessoas têm de levar em consideração que estão lidando com alunos que foram tratados de forma desigual pela sociedade.

UOL: Considerando o contexto histórico do Brasil, ter adotado as cotas é algo justificável?

Totalmente justificável. Porque a sociedade não vê que os pobres e negros de escola pública não têm as mesmas oportunidades que um aluno de escola particular. Você tem que estabelecer uma igualdade de oportunidades, igualdade não existe quando você tem pontos de partida diferentes.

UOL: Na sua opinião, por que a implementação de cotas ainda é vista como preconceito inverso por grande parte da sociedade? Como responder a isso?

A sociedade brasileira foi construída para promover a desigualdade. Desde a chegada dos portugueses, a colonização dos índios e, posteriormente, dos negros. Ela foi construída para esse fim da desigualdade. Essa ideologia é tão forte dentro das pessoas que acaba não sendo passível de convertê-las para o lado racional. O pensamento é tão rigoroso que você não consegue explicar à pessoa que os filhos dela não perderão vagas nas universidades pela adoção de cotas. Você não vai ser escutado.

A ideologia da desigualdade se esconde no argumento da meritocracia e é completamente oposta ao mérito verdadeiro, como disse. Ela, na verdade, é tão a favor dos privilégios que tem receio que essa desigualdade acabe.

Olhe o Joaquim Barbosa, por exemplo. Lula fez questão de nomear um ministro negro ao Supremo Tribunal Federal, mas, quando Barbosa foi nomeado, muitos diziam “ah, tá vendo? O negro pode chegar nesse lugar sem cota”. Mas essa decisão foi política, deveríamos ter muito mais negros na suprema corte, a maioria da nossa população é negra.

Mudar esse pensamento é mudar para direção oposta o rumo de um navio enorme. É trabalhoso. O assunto enfrenta uma resistência enorme porque, infelizmente, há quem acredite que o filho que estudou em escola particular não vai mais entrar em uma universidade pública. Pelo contrário, os não-cotistas têm mais chances do que no passado.

UOL: Por que aumentaram as chances para os não-cotistas mesmo com a adoção do sistema de cotas?

A adoção das cotas veio junto com a expansão das universidades, ninguém perdeu vagas pelas cotas. Isso que os críticos das cotas não compreendem.

Por exemplo, no passado, em universidades federais, você tinha 100 mil vagas para disputa ampla; hoje em dia, você tem 230 mil vagas para todos, sejam cotistas ou não, 115 mil para não-cotistas e a outra metade para cotistas. Ninguém foi prejudicado, ninguém perdeu seu lugar, porque, durante o governo Lula principalmente, junto às cotas veio a expansão das universidades públicas.

UOL: Há anos o movimento negro na USP pressionava o Conselho Universitário pela adoção de cotas raciais e não as cotas sociais. E eles conseguiram essa aprovação. O senhor, como ex-professor da USP, aprovou essa decisão?

Com certeza, eu acho essa decisão de adotar cotas para negros, pardos e indígenas importante. O principal, para mim, são as cotas sociais para o ensino público. Repito, nesse sistema você tem um forte elemento de justiça, até porque nosso grande problema educacional de acesso ao ensino superior é, de fato, a escola pública.

Claro que aparece aquele argumento contra essa adoção de cotas e a favor de “melhorar o ensino público”. Sim, eles têm razão, mas jogam o problema de melhorar o nível do ensino público para ser resolvido daqui a alguns milênios, né? Isso leva tempo e exige investimento.

O fato de comprovar se o cotista era negro ou não também foi muito discutido. Algo que realmente mudou meu modo de pensar sobre isso foi um artigo do Elio Gaspari na Folha há 20 anos, em que ele basicamente dizia: quando se trata de cotas, sempre surge a discussão e o argumento de que não se sabe definir quem é ou não é negro, mas, na hora de mandar a pessoa subir pelo elevador de serviço, fazer uma abordagem na rua, dentre outras formas de discriminação, ninguém tem dúvida se a pessoa é realmente negra, né?

Depois disso, olhei ao redor e vi que minha classe toda era branca, era um padrão. Isso passou a me incomodar demais, até quando entro para dar aula e todos alunos são brancos acho meio esquisito. A cota é um elemento forte de justiça.

UOL: Até quando o Brasil precisará adotar as cotas para equilibrar os números de alunos brancos e de outras raças?

Essa questão irá permanecer até o dia em que igualarmos a todas as escalas sociais a mesma oportunidade de um estudo de qualidade. A cota é uma política temporária, não podem ser eternas. Essa melhora no ensino tem de começar a acontecer, de fato, aos poucos, lá nas creches.

Hoje, o governo não consegue colocar mais recursos na educação pela crise. Enfim, já estamos perdendo tempo. Para termos igualdade serão várias décadas.

UOL: Houve algum prejuízo do ensino por causa da adoção do sistema de cotas?

Eu penso que nos cursos mais concorridos, por exemplo medicina e engenharia, é muito difícil que você seja prejudicado pelo sistema de cotas. Como a concorrência é grande, os alunos cotistas que entrarem serão melhores que os não cotistas.

Na Poli-USP, por exemplo, que não tem cota, quando começar a adotar o sistema de cotas, você vai pegar os melhores alunos que vieram de escola pública e, deste número, os melhores alunos afrodescendentes ou indígenas. Então não acho que é um prejuízo. Pode ser que algum curso menos demandado receba alunos cotistas mais fracos, isso já acontece hoje, mas isso não tem a ver, necessariamente, com cotas.

A elite brasileira tem falta de ambição. O Brasil, que até o Lula foi regido pela elite, preferiu reservar as vagas “aos seus” do que fazer o país crescer para todo mundo. As próprias falhas na educação brasileira são fruto disso. Hoje em dia você tem institutos de empresários e até políticos de direita que se preocupam com esse tema, mas esse lado da direita que se identifica com educação é recente.