Renato Meirelles: “Esqueçam as relações de consumo do Brasil antes da Covid”

06/05/2020 | Economia

Varejo presencial deve perder participação de mercado, mas ganha funções na área de distribuição de produtos e serviços

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Foto Revista Exame/Divulgação

 

Renato Meireles

Valor Econômico – 23/04/2020

Digitalização do consumidor e a necessidade de o varejo mudar o perfil para atendê-lo melhor era uma tendência que já vinha se desenhando no horizonte há algum tempo. Tanto que, no começo de março, duas semanas antes do início oficial do isolamento social, o presidente do Locomotiva, Renato Meirelles, em conversa com o Valor, já adiantava parte desse movimento. Só que agora a covid-19 está fazendo tudo andar mais depressa. Por isso, ele acredita que o que iria durar anos, vai se consolidar rapidamente. “Serão cinco anos em cinco meses”, brinca.

Para ele, saem na frente as empresas que já estavam investindo nisso, como Magazine Luiza. Mesmo assim, alerta, “essas empresas também não estavam prontas. Estavam só começando a olhar isso”.

Como resultado desse processo, diz, “o Brasil ganha, do ponto de vista do avanço das relações de consumo e com o empoderamento do consumidor graças à tecnologia”. Mas o relacionamento do consumidor com as empresas nunca mais será o mesmo. “Esqueçam as relações de consumo do Brasil antes da covid. Acabou.”

No fim da tarde de terça-feira, Meirelles conversou com o Valor por videoconferência. Eis os principais trechos da entrevista.

Valor: Duas semanas antes do começo do isolamento, o sr. disse que no médio prazo o consumidor ia depender cada vez mais da tecnologia para ter novas oportunidades de um consumo melhor, mais satisfatório, em que ele se sentisse mais bem atendido. Isso já começou?

Meirelles: Isso era um movimento que não foi inventado agora, mas que com a covid-19 acelerou e, sem medo de errar, vai ser feito em cinco meses, em vez de cinco anos. É grande o número de pessoas que não usavam o aplicativo e passaram a usar, que não compravam pela internet e passaram a comprar, que não pesquisavam preço e passaram a pesquisar. São números que mostram como aumentou a frequência e aumentou a penetração desse fenômeno. A democratização da internet já era dada, mas não a democratização dos aplicativos, o uso dos aplicativos como mecanismo de plataformas de compra. Esse número avançou mais de 30%.

Valor: Como aumentou?

Meirelles: As pessoas passaram a buscar soluções que elas não precisavam antes, seja porque elas não podem sair, seja porque as lojas não podem abrir.

Valor: Mas tem a questão da queda da renda também nessa equação.

Meirelles: Tem. Em dois aspectos. A penetração cresceu entre os mais pobres e os mais velhos. A população acima de 50 anos não usava não era só por renda, mas também por hábito, então teve uma mudança de hábito nesse processo, e os mais pobres passaram a ter que experimentar.

Valor: E como ele experimenta?

Meirelles: Gastando pouco no início. Testando para saber se é bom, e aumentando a frequência em seguida.

Valor: E o segundo aspecto?

Meirelles: Tem a ver com quem vende. Uma série de negócios não estavam nos aplicativos. Não só iFood, mas também no Mercado Livre, na Amazon, no market place do Magazine Luiza, na B2W [Americanas-Submarino]. Eles tiveram que entrar e, com isso, passaram a ter contato direto com o consumidor através dos apps. Eles também, rapidamente, se digitalizaram. Foram obrigados.

Valor: Isso quer dizer o quê? O brasileiro hoje tem uma tendência de migrar para o e-commerce?

Meirelles: Não é o e-commerce. É a lógica de plataforma. O e-commerce é só um canal de venda pela internet. O que estamos falando é um canal de venda com uma entrega, com um programa de relacionamento e um canal de venda que integra várias plataformas. Então você tem de fato a criação de um ecossistema. E o valor do atributo da última milha, que é a capacidade de entregar rápido, ganhou uma relevância enorme nesse cenário. Essa questão foi a que impulsionou a Amazon no mundo e é o que está resolvendo a vida do Mercado Livre, melhor até que a Amazon no Brasil, por exemplo.

Valor: O que diz a sondagem que o Locomotiva fez com o consumidor? Como ele está se sentindo em relação a essa experiência nova?

Meirelles: Ele está de um lado aprendendo coisas que não achava possível, então ele acha que nesse aspecto as coisas estão melhorando. Sabe que não vai mais comprar da mesma forma, que vai pesquisar muito mais preço. Antes esse era um movimento sem volta, mas tinha alguns gargalos. Tinha o gargalo de tecnologia, que as pessoas foram obrigadas a dar um jeito. Mas o principal gargalo era cultura, hábito. Isso, a fórceps, mudou.

Valor: O Locomotiva tem pesquisa que mostra que em abril 91 milhões de brasileiros deixaram de pagar alguma conta. O sr. diz que isso se relaciona com a nova realidade de compras por apps. Como?

Meirelles: De duas formas. Houve um endividamento, que veio do cartão de crédito, e que afetou a inadimplência agora. O outro é na queda de renda... se de um lado isso dificulta o consumo, por outro radicaliza aquilo que a gente já tinha identificado antes, que era a busca do custo-benefício. Esse cara que está com a conta em atraso, possivelmente está dentro de casa pensando no que fazer para conseguir equilibrar as contas. Aí a pesquisa de preço cresce. Na baixa renda tem um outro impacto. Parte dos benefícios distribuídos pelo governo se dá pelo cadastramento via Caixa Econômica Federal. As pessoas que não eram cadastradas estão tendo que se cadastrar, usando dados digitais. Imagina que na Classes D e E, que são 5,44 milhões de pessoas que não têm conta em banco nem acesso à internet. Essas pessoas estão tendo que se virar, e isso avança para parte delas. Já o empreendedor passou a aceitar meios digitais. Tem as ações sociais por via eletrônica. Tudo isso acelera o processo de digitalização.

Valor: O que é movimento sem volta agora para o consumidor?

Meirelles: É radicalizar a pesquisa de preço, buscar comodidade no processo de compra, a facilidade de entrega, utilização dos meios eletrônicos de pagamento, e aí você tem o aumento da bancarização via fintechs. Até então, as fintechs só cresciam na alta renda. Tanto que 95% das pessoas que tinham contas em fintechs também tinha conta nos bancos tradicionais.

Valor: Quando 2021 chegar o brasileiro terá outra relação com o consumo, com as finanças?

Meirelles: E com a escolha das marcas.

Valor: Onde as marcas entram? Você fala de marcas do varejo ou também de produtos da indústria?

Meirelles: De produto e varejo. O consumidor vai se conectar às marcas que estejam em plataforma que não só têm um portfólio que o atende, mas também tem uma curadoria desse portfólio que faça sentido ele e que o conecte a outros varejos. O consumidor quer entrar lá e resolver. Do ponto de vista da indústria, tem um outro movimento: cada vez mais, o varejo vai conseguir recomendar, através de inteligência artificial, quais são as marcas que resolvem para o consumidor. E essas marcas ou se apresentam para o consumidor e buscam uma relação direta ou vão ficar escravas do varejo. Ao ficar escrava, ela pode ter que abrir mão de margem para competir.

Valor: Abrir mão de margem depois de uma crise não é um movimento muito fácil nem indolor...

Meirelles: Depois de cinco anos de crise. É um desafio para a indústria. A inteligência artificial, ao propor algo para o consumidor, vira o grande momento de ativação. A importância que o on-line de marcas e produtos é muito maior, e isso aumenta o poder de barganha do varejo frente à indústria.

Valor: A indústria vai precisar trabalhar mais?

Meirelles: O desafio da indústria é não terceirizar para o varejo a sua relação com o consumidor. Ela tem que repactuar sua proposta de relação com o consumidor e não pode abrir mão de uma relação direta, se quiser sobreviver. Ela vai ter que manter a parceria com varejo e ao mesmo tempo, criar canais diretos com o consumidor.

Valor: O varejo ganha, de fato, mesmo diante da queda de renda e do aumento do desemprego?

Meirelles: A crise não representa um ganho. É perda. A consequência da crise, que é essa antecipação, representa ganho a médio prazo. A crise vai ser grave. Nossa projeção é de queda de 6% no consumo das famílias e de 5% no PIB. Não vai ser nem um pouquinho tranquilo esse processo de retomada. Não estou de forma alguma subestimando o impacto que a crise está tendo e ainda terá na vida das pessoas.

Valor: Esse movimento deve desencadear um encolhimento do varejo tradicional?

Meirelles: Vai claramente fazer com que o varejo tradicional perca share. Não vai acabar o varejo tradicional, nem com 20 crises de corona, mas ele começa a ter uma mudança de função. Passa a ser mais baseado na lógica de experiência, passa a ser um canal importante para a fidelização que se dará pelo on-line, passa a ter a função de hub de distribuição de produtos e serviços. O supermercado deixa de ser uma loja para só comprar e passa a ser uma loja em que as pessoas compraram pela internet e vão buscar tudo já empacotado, ou um ponto de coleta de compras feitas de outros parceiros.

Valor: O sr. já disse que o consumidor de baixa renda, especialmente nas favelas, é desfavorecido pela distribuição e pagar mais caro. Essa lógica vai mudar?

Meirelles: A lógica não cai por terra e ele ainda é o mais prejudicado pela distribuição. Você tem uma questão de regularização fundiária, nem todo mundo tem CEP. Um terço das pessoas que compraram na favela não tinham onde receber esse produto. Só que o aumento da demanda vai acelerar o processo de solução. Esse cara que não tinha acesso aos meios de pagamento e à conta no banco, agora passou a ter, porque está recebendo as doações via aplicativo, se cadastrando na poupança eletrônica na caixa. Ao mesmo ele tempo em que ele está digitalizando o dinheiro de uma forma muito rápida, ele aumenta a demanda pelo on-line e aí solução dessas logísticas passa a ser fundamental, levando a indústria e o varejo a colocar dinheiro para resolver esses problemas.

Valor: Alguns economistas dizem que a saída da crise demanda uma grande distribuição de renda. A mudança tecnológica contribui?

Meirelles: Não existe saída para crise que não passe por uma radicalização da distribuição de renda. Por conta da pandemia, os modelos de distribuição de renda tornaram-se modelos eletrônicos. Isso muda completamente a relação que essas pessoas têm com o consumo. Ela começa a ver uma série de vantagens de gastar também por meio eletrônico.

Valor: O consumidor sai da crise mais preparado?

Meirelles: Sem dúvida. Mais preparado, mais maduro, mais confiante em relação a sua capacidade de superar isso, mas também sai mais desconfiado. Ele sai mais desconfiado de promoção, por exemplo, porque agora ele tem uma chance maior de comparar.

Valor: Há dois meses você citava que havia uma demanda e uma expectativa do consumidor de baixa renda para ele recuperar pelo menos parte do consumo que ele tinha dez anos atrás. E agora?

Meirelles: Eu acho que ele não tem mais a ilusão de que as coisas serão como antes.

Valor: O Locomotiva pesquisou o que o consumidor pretende em termos de poupança depois da crise?

Meirelles: Temos uma pergunta relacionada a isso. Não mudou muito em relação a antes. A poupança hoje ele enxerga como uma segurança, por medo de desemprego, mais do que uma visão de longo prazo. Neste momento ele está pensando mais em sobreviver do que em viver.

Renato Meirelles é Pesquisador, escritor e Presidente do Instituto Locomotiva

Foto de apresentação: Claudio Belli/Valor