Ricardo Lessa: “Maria da Penha fez de sua história trágica um símbolo da luta contra a violência que atinge as mulheres”

17/11/2017 | Políticas de igualdade

Valor Econômico 10/11/2017

mariadapenha1.jpgTítulo original: Em nome da lei

Ícone das mulheres na luta contra a violência doméstica, Maria da Penha, além de nome de lei, é uma metáfora viva. Frágil, superando obstáculos, vestida com uma discreta camisa florida, ela chega com o rosto sereno, um sorriso leve, para cumprir mais um dia do que se tornou sua missão de vida: levar seu corpo como testemunho da barbárie que um homem é capaz contra uma mulher. Pequena, manobrando a cadeira de rodas que lhe faz companhia há 34 de seus 71 anos, essa farmacêutica cearense não demonstra amargura. Quando olha para o lago na frente do restaurante e enxerga as grandes flores que brotam das plantas aquáticas ou fala das filhas, das irmãs e dos pais, por exemplo, dá sinais claros de felicidade.

Com paredes brancas e decoração jovem ao estilo de Bali, o restaurante Colosso Lake Lounge ainda está vazio. Maria da Penha antecipou sua chegada para as 11h30, em virtude de outro compromisso. A escolha desse espaço novo, em uma região mais distante da concentração de prédios de Fortaleza, não teve nada a ver com alguma veleidade gastronômica. “Não, não me importo com isso”, diz. Quem despertou a curiosidade pelo local foi o professor de hidroginástica, que costuma dar aulas de remo em caiaques para pessoas com deficiência no lago em frente ao restaurante. Mas, há um ano, Maria da Penha teve de largar a terapia na água e lamenta não conseguir voltar a ela por causa da agenda apertada.

Até 2015, Maria da Penha fazia uma média de duas viagens por mês. Hoje, tem rejeitado alguns convites, especialmente quando o local não dispõe de adaptações necessárias a uma cadeirante. Já passou por situações vexatórias em aviões inadequados para a cadeira de rodas, prédios sem rampas ou recintos com passagens muito estreitas. Depois desse aprendizado, pede antes para verificar a estrutura do local onde serão feitas as reuniões e encontros, além das condições de transporte. Geralmente comparece a eventos em capitais. De carro, só pode fazer trajetos de no máximo 100 km.

Por onde passa e conta sua história, desperta comoção: em 1983, Maria da Penha Maia Fernandes, aos 37 anos, levou um tiro do marido enquanto dormia. A bala causou uma lesão medular, na altura das terceira e quarta vértebras toráxicas, e deixou-a paraplégica. Mas ela não esmoreceu com a tragédia e passou a lutar contra a violência doméstica. Já recebeu prêmios na Espanha e na França. Pela embaixada americana no Brasil foi homenageada com a comenda Mulher Coragem, a única brasileira a ter tal distinção. Do governo brasileiro recebeu a Ordem do Cruzeiro do Sul. Seu Instituto Maria da Penha recebeu investimentos do Banco Mundial, da ONU e outras instituições internacionais de apoio à mulher.

Em uma mesa de canto, em um ponto privilegiado do restaurante, com ampla vista para o lago, Maria da Penha diz que a saúde agora está bem, passa por controles médicos anualmente e os exames estão satisfatórios. Depois da brutal agressão que sofreu, ela conta que não teve mais relacionamentos afetivos. “Não, não houve mais”, balança a cabeça, com seu jeito reticente. Com frequência vê os amigos e os colegas da faculdade de farmácia, que fizeram festas para comemorar 25 e 50 anos de formatura. “Agora a gente vai comemorar todos os anos”, diz, em tom de brincadeira. “Não dá mais para esperar tanto tempo.”

Desde os tempos da faculdade, Maria da Penha já mostrava que não era mulher de se submeter a cabrestos. Aos 18 anos casou-se de véu e grinalda com um jornalista, mas impôs uma condição: que o marido a deixasse concluir os estudos. Formou-se em farmácia, mas o casamento teve vida curta. “Durou uns três anos”, diz ela. “Ele era machista.”

Em 1973, tornou-se uma jovem desquitada - já que o divórcio não existia na legislação brasileira da época - e partiu para cursar uma pós-graduação na Universidade de São Paulo (USP), na capital paulista. Foi então que conheceu o estudante colombiano Marco Antonio Heredia Viveros, que se mostrava atencioso e gentil. Foi aprovada em um concurso público e começou a trabalhar como farmacêutica bioquímica no Banco de Sangue do Hospital dos Servidores de São Paulo. Com isso, conseguiu renda para alugar um apartamento. Logo o colombiano se juntou a ela. Engravidou de sua primeira filha, depois de registrar o casamento na embaixada da BolÍvia - ela soube, mais tarde, que Viveros já era casado e tinha um filho na Colômbia.

Maria da Penha trabalhava, estudava e sustentava a casa, já que o marido havia perdido a bolsa e não conseguia emprego. Após algum tempo, os dois chegaram à conclusão de que morar em Fortaleza, próximos da família dela, seria mais barato e confortável. Logo depois da conclusão de seu mestrado - já grávida da segunda filha -, estavam todos na cidade natal dela.

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Maria da Penha tem como missão levar seu corpo como testemunho da barbárie que o homem é capaz contra a mulher

Até ali, o marido mantinha-se cordial com amigos e com a família de sua mulher. Maria da Penha voltou a seu antigo emprego no Instituto de Previdência do Estado do Ceará e acionou sua rede para conseguir trabalho para Viveros no Centro de Apoio à Pequena e Média Empresa (Ceag), hoje Sebrae. Depois que se viu seguro, empregado e naturalizado brasileiro, ele transformou-se. Ficou agressivo com a mulher e autoritário com as filhas, pequenas. E revelou sua bigamia, como escreve Maria da Penha em seu livro “Sobrevivi… Posso Contar” (Saraiva).

Em menos de cem páginas, ela narra, com seu estilo conciso e direto, os tormentos pelos quais passou nas mãos do ex-marido e a luta para que ele não permanecesse impune pelo crime que cometeu. Um exemplar foi levado por Mário Mamede, na época deputado pelo PT do Ceará, ao Conselho de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) e causou forte impacto. Acabou resultando na condenação do governo brasileiro por negligência em relação às mulheres, em 2001. A promulgação da Lei 11.340 em 2006, que leva seu nome, foi mais um desdobramento.

A lei tornou-se um recurso importante para as brasileiras. Mais de 212 mil processos registrando casos de violência doméstica e familiar foram abertos em 2016. As estatísticas do serviço telefônico 180, de atendimento exclusivo para mulheres, mostram que denunciam cada vez mais a violência contra elas. Entre 2014 e 2016 houve aumento de 44,7% dos relatos de maus-tratos. Só no primeiro semestre do ano passado, a central telefônica recebeu 67.962, quase 90% se referiram a situações previstas na Lei Maria da Penha. Antes de sua promulgação, a violência contra a mulher era enquadrada na maioria das vezes como “crime de menor poder ofensivo”. E a punição não passava de penas alternativas, como pagar cestas básicas. Mas, mesmo assim, a lei encontra obstáculos. Com 11 anos, no Congresso há cem projetos para modificá-la. Atualmente, tramita o de número sete, causando preocupação ao movimento feminista.

Depois de 2006, o crime é punido com mais rigor. Além disso, por pressão da OEA e de entidades, as capitais brasileiras passaram a construir centros de referência para atendimento de mulheres. “Alguns não funcionam como deveriam”, diz Maria da Penha.

Os centros deveriam ficar abertos a semana inteira, 24 horas por dia, com pelo menos uma equipe de psicólogo, advogado e assistente social, juizado, delegacia e casa de abrigo. Maria da Penha não considera que a lei levou à diminuição de atos violentos contra as mulheres. ”Mas deu a elas a possibilidade de sair do silêncio. O silêncio maltrata.”

Maria da Penha sonhou, como outras tantas mulheres, com um casamento feliz e fez várias tentativas para que desse certo com Viveros. Cedeu a “muitos caprichos” do então marido na esperança de que o comportamento dele voltasse a ser como era antes da transformação. Mas só piorou. O dia 29 de maio de 1983 amanhecia e Maria da Penha ainda dormia. Foi acordada por um forte estampido. Sentiu o sangue borbulhando em suas costas e não conseguiu se mexer. “Pronto, o Marco me matou!”, descreve.

O então marido sustentou na Justiça a história de que o tiro havia partido de um assaltante, mas os vizinhos depuseram e afirmaram não ter visto nenhuma pessoa estranha saindo da casa onde o casal morava. Passaram-se oito anos até que o processo fosse julgado em primeira instância. A juíza o condenou a 15 anos de prisão. Mas ele deixou o tribunal em liberdade, recorreu e conseguiu anular a sentença, o que levou o processo à estaca zero.

Os advogados de Viveros tentaram adiar ao máximo um novo julgamento para alcançar o prazo de prescrição do crime: 20 anos. Seis meses antes que isso ocorresse, outro júri o condenou novamente, em 2002. Ficou dois anos preso em regime fechado, depois passou para o regime semiaberto e passou a viver, em liberdade, no Estado vizinho, Rio Grande do Norte.

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Nossa conversa já ia longe, passava de 12h30, e ainda não tínhamos pedido os pratos. O restaurante já começava a encher. De entrada pedimos piabas fritas, peixinho de água doce que se desmancha na boca. Maria da Penha prova dois pequenos.

Escolhemos uma mesa de canto, onde ela ficaria de costas para o público, para evitar interrupções. Maria da Penha é muito reconhecida em Fortaleza e evita ir a shopping centers e supermercados. Mas gosta quando outra mulher a cumprimenta e conta sua história. “Por que essa lei não chegou antes?”, perguntaram-lhe certa vez, num aeroporto. “Cansei de apanhar do meu marido, agora ele já se foi.” “Se não fosse sua lei eu estava perdida, você me salvou”, agradeceu-lhe outra.

Antes das filhas casarem, Maria da Penha se preocupava se elas fariam boas escolhas. Mostraram que sim, deram-lhe seis netos, três meninos e três meninas, e os genros são carinhosos e apoiam a bandeira feminista. “Fiquei mais tranquila.” As filhas perderam o contato com o pai. “Ele nunca as procurou e elas nunca quiseram.”

Valéria, sua irmã mais nova, a substitui nas brincadeiras que exigem mobilidade com seus netos. "Brinca, rola, fica no nível deles. Ela é muito boa nisso”, comenta. Foi a caçula que ficou mais próxima de Maria da Penha nos momentos de mais necessidade. Valéria esteve sempre presente para pegar e levar criança na escola, levar ao médico, para acompanhá-la nos hospitais.

Em Brasília, quando esteve internada no hospital Sarah Kubitschek, Maria da Penha ainda tinha esperanças de que, com o tratamento fisioterapêutico e a excelência dos médicos, recobraria os movimentos das pernas. Mas foi lá, depois de exames minuciosos, que recebeu a resposta que jamais queria ouvir: “Nunca mais poderá andar”. As palavras ecoavam em sua mente: “Eu, Maria da Penha, jamais poderei andar, jamais poderei andar”. Nas longas esperas dos corredores do hospital entre um exame e outro, deprimida, recordava os versos de Fernando Pessoa: “Mais vale não ser do que ser assim” e chorava. Baixinho.

De volta a Fortaleza, depois de cirurgias e meses de internação em Brasília, ainda viveria outras provações. Não totalmente adaptada à cadeira de rodas, sua fragilidade não sensibilizaria o marido. Ele voltou a isolá-la da família e amigos, humilhá-la, até um certo dia em que aceitou conduzi-la ao banho. Ao testar a água, Maria da Penha levou um choque elétrico e começou a gritar pelas empregadas, já alertas para os maus tratos de Viveros. Ela diz não ter dúvida de que foi uma tentativa de eletrocutá-la.

Naquele ano de 1983, foram 1,7 mil mortes de mulheres no Brasil. Hoje chegam perto de 5 mil por ano, mais do que na Síria, um país em guerra. Na Argentina, a taxa de mortes de mulheres por cada 100 mil habitantes é 1,4, no Brasil é 4,8. A maioria das mortes é provocada pelos maridos ou companheiros.

As babás Dina e Rita sempre foram cúmplices de Maria da Penha e estavam na defesa das filhas. Levavam comida escondida para as meninas, quando o pai lhes servia cabeça de galinha e bucho de boi como almoço. Até o leite das crianças, o pai abolira. E faziam o serviço de correio entre ela, amigos e família.

Quando Viveros precisou viajar a trabalho, deixando um vigilante para cumprir suas rígidas normas, a família de Maria da Penha já havia providenciado uma ordem judicial para que ela pudesse deixar a casa, acompanhada das filhas, e se transferir para a residência dos pais. “Finalmente”, recorda. “Consegui dormir uma noite em paz sem estar com todos os alertas acesos.”

Antes da partida ainda teria outra surpresa. Ao vasculhar as gavetas da casa, descobriu cartas que o marido trocava com outra mulher, no Rio Grande do Norte, justamente para onde ele havia viajado. Era a peça que faltava do quebra-cabeça para completar a trama macabra que Viveros vinha encenando contra ela e as filhas.

Hora de pedir o almoço, Maria da Penha escolhe um espaguete ao molho rústico (tomate e carne), como de costume. Para beber, uma água sem gás. Ela não bebe álcool.

Maria da Penha gosta de assistir ao programa “Encontro com Fátima Bernardes”, da Rede Globo, especialmente quando ela convida o poeta cearense Bráulio Bessa. "Gosto de ler biografias geralmente ligadas à questão feminina. E vejo os programas sertanejos de gente daqui do Ceará.” É católica, mas não frequenta a igreja. "Respeito as outras religiões. Sempre vou a reunião de mulheres de outras crenças quando me convidam.”

Passa de 13h30. O cantor Tião Simpatia, que vai se apresentar com Maria da Penha, chega à mesa para lembrar que está na hora de partir para o evento. Mas a palavra final é da entrevistada. A sobremesa se impõe. “Vamos esperar o doce”, diz. Como o restaurante não tem seu predileto pudim de leite, ela pede Romeu e Julieta: releitura moderna com calda de goiaba e flã de queijo, com pedaços crocantes de castanhas em volta.

Mas o preparo leva tempo. Suficiente para Tião Simpatia cantar seu hit para Maria da Penha, em que rima valentão, machão, bofetão, camburão e prisão. Conta que, quando a compôs, ainda não conhecia pessoalmente a homenageada. Agora é presença constante ao seu lado nas palestras e reuniões que anima com outras músicas e repentes com versos feministas, em ritmo sertanejo.

Quando o prato finalmente aporta em frente a Maria da Penha, ela enche uma colher. “Muito doce!” Deixa quase tudo e toma um gole d'água. Ela gosta mesmo é de pudim de leite. Com a autoridade de quem prova a sobremesa em todos os lugares por onde passa, sentencia: “O melhor é o do Hotel Nacional de Brasília”.

O café fica para outro dia.

Tião Simpatia conduz Maria da Penha. Na saída do restaurante, uma pequena espera para o táxi especial para cadeirantes baixar o elevador na traseira, onde vai se encaixar sua cadeira de rodas. “Ainda não deu para comprar um carro adaptado”, brinca. Maria da Penha hoje vive da pensão que recebe do instituto onde trabalhou até a data do crime.

Sem queixas, ela olha em volta, os coqueiros, a vegetação baixa que cerca a lagoa, sente o vento que bate na folhagem, respira e diz com seu jeito sereno e simples: “Foi bom!”.E parte, resignada, para um novo evento de sua movimentada agenda. Mais uma palestra, agora numa fábrica de fogões.