Roberto Andrés: “A água fala”

27/03/2018 | Meio ambiente

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Cachoeira do Ribeirão do Onça, no bairro Aarão Reis, a 10 quilômetros da Praça 7. Se não estivesse repleta de esgoto, poderia ser opção de lazer para a população

fdo8.jpgO Tempo – 22/03/2018

Oi, aqui é a água. É comum me encontrar nos estados sólido, líquido e gasoso, por isso talvez você estranhe eu me transubstanciar em colunista de jornal. Mas é que hoje é meu dia e achei por bem deixar alguns recados.

Nos últimos meses, muita gente tem reclamado que tenho aparecido demais e que isso provoca tragédias. É curioso, há alguns anos reclamavam que eu andava sumida. Uma hora falta, outra sobra, mas a quantidade total de água no planeta é sempre igual. Então, o que está acontecendo? Quem é responsável pelas tragédias?

Olha, a culpa não é minha. Há milênios, meu ciclo é o mesmo: subir aos ares por evapotranspiração, formar nuvens, cair em forma de chuva, penetrar na terra, brotar em nascentes, formar rios, correr para o mar. Muitas sociedades souberam e sabem lidar comigo. Entendem que há períodos de cheias e de seca, que é arriscado ocupar áreas de inundação, que poluir os rios destrói um bem valioso.

Há cinco séculos, os europeus invadiram essas terras. Naquele momento, como bem lembra o ecologista Maurício Andrés Ribeiro, Pero Vaz de Caminha escreveu: “As águas são muitas, infindas”.  Quinhentos anos depois, descobriu-se que os rios podem ser extintos; as chuvas, minguar; as águas potáveis, sumir. E que a culpa talvez seja da maneira como esse território vem sendo colonizado.

O desmatamento é a ponta de lança dessa tragédia. As florestas e, especialmente, a Amazônia têm papel fundamental na regulação do nosso clima, conforme demonstra Antonio Nobre em artigo brilhante: trata-se de um “parque tecnológico natural”, que gera grande transpiração e exporta “rios aéreos de vapor” para o restante do continente. Não fosse isso, talvez o Brasil fosse um grande deserto, como são regiões de mesma latitude em outros continentes.

Assim, pessoal, se vocês não desejarem a minha ausência em suas torneiras, convém começar a interromper o desmatamento na Amazônia.

Convém, também, parar de jogar esgoto nos rios. Não sei se vocês sabem, mas apenas 40% do esgoto do país tem tratamento adequado. O restante acaba por contaminar córregos e ribeirões. Enquanto jogam bosta em mim, as companhias de saneamento distribuem lucro para seus acionistas. A Copasa, por exemplo, desde sua privatização parcial no governo de Aécio Neves, distribuiu mais de 1,7 bilhão de reais em dividendos. Falando nisso, quem merece jorradas diárias de cocô, o líquido da vida ou aquele senador que manda matar o primo antes da delação?

Convém, ainda, repensar o território urbano. A culpa pelas enchentes do último mês em Belo Horizonte não é do excesso de chuvas. Quando uma avenida vira um piscinão e os carros parecem brinquedos, trombando um no outro, é preciso lembrar que ali embaixo há córregos e que suas cheias sempre existiram. O que está errado é ocupa-los com avenidas sanitárias, escondendo-os debaixo do tapete de asfalto.

Não há obra de canalização ou ampliação de canal que resolva as enchentes. Esta é uma matemática simples. Vejamos: a cidade de Belo Horizonte tem 330 quilômetros quadrados. Quando chove 50 milímetros, como aconteceu na última semana, isso quer dizer que cada metro quadrado da cidade tem essa altura de água. O resultado é um volume total de 16,5 bilhões de litros.

Esse volume todo pode ser um tesouro se adentrar o solo e abastecer o lençol freático. Ou se for armazenado em reservatórios naturais. Mas é uma tragédia se correr rapidamente para poucas avenidas de fundo de vales, através de ruas asfaltadas e canais retificados.

Isso tudo está bem explicado em uma carta, lançada hoje, por um grupo de movimentos e pessoas preocupadas com a gestão das águas no território. Vale muito conhecer. O texto é uma lição para a Prefeitura de Belo Horizonte, que cogita realizar mais obras caríssimas que somente postergarão os problemas das enchentes para mais adiante.

Olha, não quero sobrar nem faltar, mas para isso preciso da cooperação de vocês. Preservar e cuidar bem do ecossistema que permite que eu exista em relação de equilíbrio com os seres vivos não é tão difícil assim. E os principais beneficiados serão, certamente, suas filhas e filhos.

Roberto Andrés é arquiteto e professor na UFMG.