Saul Leblon: “As nossas grandes esperanças”

24/07/2020 | Política

Não há precedente de regresso ao 'normal' no roteiro das grandes rupturas históricas. E não se pode responder ao extraordinário com as ferramentas da rotina

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Saul Leblon

Carta Maior, 15/07/2020

Quando o extraordinário acontece, protocolos e ferramentas da rotina se tornam obsoletos.

Ceder à inércia agarrando-se a eles pode conduzir à irrelevância.

A lei de ferro das rupturas históricas vale para todas as instancias da vida.

Mas é particularmente implacável naquela que ecoa todas as demais: a ação política.

O século XXI sofreu um corte de consequências equivalentes ao conflito que redesenhou o mundo, após a derrota de Hitler, em 1947.

Uma pandemia castiga o planeta há seis meses.

Matou mais de meio milhão de pessoas; infectou mais de 13 milhões de seres humanos.

Paralisou boa parte da produção, comprimiu o consumo, desempregou legiões.

Continuará a destruir vidas e riqueza até que uma vacina possa enfrentá-la nos seus próprios termos.

Há uma outra vacina, porém, da qual tampouco a humanidade poderá prescindir.

Sem ela, mesmo o controle da doença não aplacará aquilo que o micróbio escancarou e acentuou --mas não originou, nem desaparecerá com ele.

O coronavírus expôs a dramática condição humana no mundo estraçalhado da desordem neoliberal.

O peso morto da supremacia rentista asfixia povos e nações desde a crise de 2008.

Capitais celibatários, que se reproduzem sem agregar renda nem empregos, reviram-se há 12 anos nas tripas de uma crise de superprodução de riqueza abstrata. O dinheiro que se alimenta de dinheiro, e se reproduz diretamente na forma dinheiro (D-D), apartou-se da responsabilidade de agregar riqueza nova à sociedade (D-M-D), embora vampirize rendas já existentes com as privatizações.

Para sustentar taxas de acumulação incompatíveis com a democracia, a vida e o meio ambiente, submete-se a humanidade a uma espiral de dilapidação global de direitos, patrimônio público e recursos naturais.

Não há nada de errado com o capitalismo, portanto, quando as praças financeiras do mundo rico batem recordes de rentabilidade ---como diz o professor Luiz Gonzaga Belluzzo, enquanto o cenário ao redor é de terra arrasada pelo desemprego das famílias assalariadas, o empobrecimento da classe média e a desigualdade a caminho da fome.

Capatazias fascistóides são alçadas ao poder para seccionar a existência orgânica dos indivíduos e assegurar a submissão ao regime da precarização da vida.

A pandemia microbiana expôs a vulnerabilidade da vida humana diante de um capitalismo que atingiu a sua plenitude através da acumulação financeira estéril.

As consequências dessa epifania no imaginário social não devem ser subestimadas.

Não por acaso, classes proprietárias pressionam governantes a precipitar o fim do isolamento --a qualquer preço-- para reconduzir populações de volta à suposta 'normalidade’.

Não há precedente de regresso ao ‘normal’ no roteiro das grandes rupturas históricas.

Entre outras razões, porque elas inoculam nas entranhas da sociedade a consciência do intolerável.

O Cine Carta Maior organizou recentemente um mini-ciclo de obras do cineasta Ken Loach, comentadas por Luiz Gonzaga Belluzzo, que discute esse binômio: 'Rupturas e a Consciência do Intolerável' ( https://bit.ly/3fn6ynW e https://bit.ly/3iRwev0)

Herói festejado da Segunda Guerra, Churchill, por exemplo, mostra Ken Loach, foi derrotado pelos trabalhistas em 1945: seu programa de manutenação do arrocho socialo e econômico foi batido fragorosamente pelo projeto de um Estado do Bem Estar Social defendido pelos trabalhistas ingleses, com base nas cinco doenças da nação diagnosticadas pelo 'Relatório Beveridge': a miséria, o desemprego, a falta de atendimento médico, a ignorância e a insalubridade.

Surtos de revolta nos quatro cantos do planeta mostram que as elites hoje, a exemplo de Churchill, em 45, não sabem o que fazer com a nitroglicerina acumulada na ruptura pandêmica.

A esquerda não pode incorrer na mesma hesitação.

Dar voz organizada à insatisfação latejante é o que de mais importante as forças progressistas tem a fazer nos próximos dias, semanas, meses e anos.

As eleições municipais adiadas de novembro são uma oportunidade preciosa para adensar esse mutirão.

O caso particular de São Paulo merece um olhar de redobrado desassombro.

Trata-se da disputa pelo poder na maior e mais importante cidadela do capitalismo na América Latina.

Carta Maior avalia, fraternalmente: um dos braços cruciais dessa empreitada, o Partido dos Trabalhadores, pode ter subestimado o chamado da história nesse momento.

O PT realizou sua convenção municipal, em maio, como se lutasse a batalha do dia anterior.

Como se as ferramentas da rotina pudessem dar conta do extraordinário que assalta todas as dimensões da vida e da sociedade.

Carta Maior não questiona candidaturas e escolhas.

Mas argui o conjunto de um processo que avulta fragilizado por uma melancólica desistência de se responder ao assombroso com o descortínio que ele requer.

Se não é para acender as nossas grandes esperanças e reconectar a sociedade com o futuro --como diz o filósofo italiano Franco Beraldi- qual será, então, o papel da esquerda na encruzilhada da pós-pandemia capitalista?

São Paulo é a sentinela avançada desse braço de ferro no Brasil.

Aqui se afina a métrica de referência da espoliação laboral, da dominação subjetiva, da hegemonia midiática, da repressão policial impiedosa que serve de bússola ao resto do país.

Esse núcleo duro de poder e riqueza está incrustrado no Estado há mais de 40 anos governado pelo PSDB.

Sugestivamente, é aqui também a tumba sinistra na qual a pandemia empilha 1/5 dos cadáveres ceifados em todo o Brasil.

Fastígio e desamparo resumem em São Paulo os paradoxos de elevado custo humano e social do capitalismo em nosso tempo.

Não por acaso, a pandemia revelou em São Paulo o maior cemitério de pobres da AL : em Vila Formosa,zona leste da metrópole, inventou-se o enterro noturno, para dar vazão ao funeral ininterrupto da exclusão para a extinção.

O PT fez sua convenção municipal como se não fosse preciso abrir todos os espaços políticos à voz de um povo tolhido a sepultar seus mortos à noite.

Que mensagem o partido passaria ao Brasil se transformasse a campanha municipal em São Paulo num poderoso alto-falante aberto ao intolerável que aqui grita?

Não apenas aberto: direcionado a fazer do processo eleitoral um corajoso movimento de organização popular, para entregar a cidadãos sem cidadania o comando do seu destino e o destino da maior cidadela capitalista da América Latina.

A vitória verde-socialista nas eleições municipais francesas deveria sacudir a inércia das forças progressistas aqui diante de uma subjetividade planetária que se inquieta e se contagia . Ainda há tempo.

Em entrevista recente ao El País, 0 sociólogo inglês Richard Sennett –que trabalha em um projeto da ONU sobre a cidade do futuro— disse que a meta nos países ricos é reordenar o espaço dos grandes centros urbanos no pós-pandemia.

O propósito é criar um mosaico de pequenas cidades dentro da grande cidade, sintetiza.

Investimentos keynesianos em infraestrutura serão necessários.

Será preciso reduzir deslocamentos, arejar espaços, entrelaçar funções (serviços/trabalho/moradias), propiciar o controle comunitário em diferentes esferas, desde segurança até o combate a futuras epidemias.

Sennett mostrou-se cético quanto a viabilidade de transição semelhante em grandes manchas de pobreza urbana, como é o caso de São Paulo.

Mais uma razão para sacudir a letargia que parece embaçar o olhar do PT sobre o seu futuro e o da cidade.

Sim, será obrigatório tributar a riqueza financeira para responder à encruzilhada fiscal pós-pandemia: demandas sociais agigantadas; receitas minguantes.

Não basta orçamento, porém.

Os desafios despejados pela tríplice crise a nossa frente --sanitária, econômica e política-- não serão superados apenas com as ferramentas da rotina.

A mais dramática deficiência do país no pós-pandemia continua a ser aquela que explica, em grande parte, o êxito da aliança conservadora em derrubar Dilma, encarcerar Lula, demonizar a política e alçar um fascista ao governo do país.

Estamos falando do enorme descompasso entre a emergência social na qual vivem mais de 100 milhões de brasileiros (com renda até R$ 15 reais/dia) e a frágil organização política de que dispõem para cobrar direitos.

A assimetria não é obra exclusiva da barragem conservadora.

O PT tem contas a acertar com esse saldo da história.

A inegável abrangência das mutações econômicas e sociais registradas no ciclo de governos do partido (2003 a 2014) não se fez acompanhar de uma contrapartida relevante no plano da organização popular.

Mais de 20 milhões de trabalhadores conquistaram um emprego formal entre 2003 e 2013. Mas a taxa de sindicalização não cresceu no período.

Milhões de famílias adquiriram imóveis pelo Minha Casa Minha Vida. Sem alterar, substancialmente, o número de associações de moradores.

O mercado de massa quase dobrou de tamanho, sem um pacto de reindustrialização que dotasse a economia do salto de produtividade capaz de gerar o excedente necessário à universalização de direitos.

O Bolsa Família chegou a 12 milhões de lares reunindo um formidável contingente de 50 milhões de beneficiados --sem um fórum próprio que os expressasse.

Imagine-se o poder de resposta de uma organização capilar de mães do Bolsa Família, hoje, diante da tragédia do coronavírus...

Assim por diante.

Um país carente de recursos como o Brasil não resolverá nenhuma de suas pendências históricas - segurança, saúde, educação, moradia, saneamento, nutrição etc— sem que a retomada do processo de desenvolvimento se faça acompanhar de uma força social que o conduza.

A centralidade da organização popular é a pedra crucial da agenda.

Um projeto progressista para a cidade de São Paulo tem a obrigação de expressá-lo em todas as instancias e estágios das eleições --desde a convenção partidária, passando pela construção do programa e a articulação de formas de luta para torná-lo crível.

Não se trata de adereço retórico.

Transformações democráticas figuram, muitas vezes, como a única alavanca capaz de remover obstáculos intransponíveis quando abordados exclusivamente sob a ótica dos ‘livres mercados.

O ciclo de governos do PT no Brasil talvez tenha atingido o limite das mudanças possíveis numa trajetória a frio, sem forte ampliação da organização popular.

A suposição de que a consciência de classe escorreria das gondolas dos supermercados para a correlação de forças da sociedade revelou-se uma trágica ilusão.

A derrubada da Presidenta Dilma –sem resistência organizada-- resume preço alto dessa miragem.

A convenção municipal do PT para disputar a cidadela do capitalismo brasileiro refletiu pouco a lição da história.

Mais que isso: não quis, ou não soube, marcar esse momento com uma estaca de reordenação de prioridades.

Não apenas de metas.

Mas da forma de fazer política.

De novo, não se trata de dissimular fragilidade em retórica.

O PT só tem uma finalidade na história brasileira.

E é nela que pode encontrar a saída para o seu labirinto.

Qual seja: entregar-se , concretamente, através da organização popular, a quem de direito.

Quem?

O povo organizado, de cuja vértebra ele nasceu embalado no sonho de levar a democracia neste país às suas últimas consequências, o que não significa outra coisa que não uma democracia socialista.

Não é fácil sustentar o rumo no mar revolto do nosso tempo.

Mas é pegar ou largar. E largando, deslizar a alma no sumidouro da história, onde repousa o cemitério das grandes esperanças perdidas.

Saul Leblon é jornalísta.