Sérgio Abranches: “A importância da personalidade do governante na democracia”

13/09/2019 | Política

G1, 08/09/2019

Sérgio Abranches 

Desde que Theresa May deixou o cargo de primeira-ministra do Reino Unido e foi substituída por Boris Johnson, o país vive situações de afronta à sua democracia sem precedentes no após-guerra. Os dois momentos capitais de confronto com as tradições democráticas britânicas foram o recesso parlamentar prolongado e a ameaça do primeiro-ministro de desobedecer à legislação sobre a Brexit aprovada pela Casa dos Comuns e confirmada pela Casa dos Lordes. Ao pedir à rainha a aprovação pró-forma para prolongar o recesso parlamentar, dificultando o exame de um acordo para uma saída negociada da União Europeia, Johnson causou revolta entre os Conservadores. Um parlamentar deixou o partido. Outro, irmão do primeiro-ministro, renunciou ao mandato parlamentar. Ministros renunciaram ao governo e ao parlamento. Vários se opuseram à atitude autoritária do primeiro-ministro, dando maioria à oposição. Como resultado, Johnson sofreu derrotas seguidas no parlamento. Com apoio Conservador, aprovaram lei proibindo uma saída não-negociada (no-deal Brexit) e outra determinando que ele peça formalmente um adiamento a Bruxelas. Johnson diz que vai desobedecer e já foi alertado que pode ser processado e preso.

A democracia britânica tem mecanismos de defesa contra investidas autoritárias. Por isso, o parlamento pôde se insurgir e neutralizar a manobra autocrática de Johnson. Mas, não é uma solução acabada. O país vive hoje em tensão e impasse, na expectativa de qual será a resposta do primeiro-ministro acuado. Johnson é populista e autoritário. A personalidade autoritária do governante faz diferença. Basta ver o clima de tensão e confronto que existe hoje na política dos Estados Unidos, em reação às atitudes antidemocráticas de Donald Trump. O Congresso está polarizado, o partido Republicano cada vez mais dividido. Numerosos governadores estão em conflito direto com Washington, insatisfeitos com os retrocessos nas políticas públicas federais em vários campos, entre eles clima, conservação da natureza e política comercial. O Brasil enfrenta uma crise política, que se tornou crônica e aguda após a posse de Jair Bolsonaro, outro governante de personalidade autoritária, sempre em confronto com algum setor, sempre forçando as instituições e a Constituição.

Curioso é que a democracia mais frágil, a italiana, livrou-se com mais eficácia do golpe populista de Matteo Salvini, usando a conversação e o acordo democráticos. Giuseppe Conte, um primeiro-ministro politicamente fraco, diante do voto de desconfiança articulado por Salvini para derruba-lo e convocar eleições, renunciou. Mas não sem mostrar a trama autoritária por trás do ato de infidelidade do parceiro de coalizão. O Partido Democrático, de centro-esquerda, dispôs-se a conversar com o M5S, um partido idiossincrático, quase anarquista, de centro-direita, para formar um novo governo e bloquear Salvini. As conversas avançaram, os pontos de divergência foram resolvidos ou retirados da agenda do governo e Conte voltou ao cargo de primeiro-ministro, mais forte politicamente do que antes. Se o governo vai durar ou não, é desimportante. O parlamentarismo convive bem com a instabilidade governamental. O que é interessante é que seja na Itália, a mais problemática das democracias europeias maduras, que a ameaça populista seja afastada, mesmo que temporariamente, dentro das regras da democracia e sem sobressaltos. Salvini certamente não esperava que fosse assim. Apostou na fragilidade do sistema e perdeu. Talvez os italianos tenham mais a perder e mais consciência das fraquezas institucionais de sua democracia. Britânicos e americanos são tão confiantes na solidez dos regimes que construíram que os tomam por inabaláveis. Mas, como alertava Shakespeare em Macbeth, a confiança é a maior inimiga do ser humano.

A democracia é um regime complexo e delicado. As instituições contam muito e são elas que, ao final, definem a robustez e a qualidade do regime democrático. Mas ela tem fragilidades. A principal é que, para não trair sua própria natureza, deve dar liberdade de ação a seus inimigos. Precisa, para não se negar, permitir que usem suas próprias regras contra ela. Tem dado certo em muitos lugares. Quando é assim, o regime desliza rumo ao autoritarismo, se a sociedade não resiste, convocando as instituições de autodefesa a tempo. Há analistas dizendo que os Estados Unidos estão neste momento de deslize. É, certamente, o caso do Brasil.

A democracia requer certos formalismos. Um caso exemplar disso, foi capturado recentemente pelas TVs de todo o mundo, quando um membro do partido Conservador atravessou o plenário deixando a bancada de seu partido e sentando-se na bancada do partido Liberal-Democrático, enquanto Boris Johnson estava a falar de seus planos. Uma formalidade simbólica carregada de conteúdo político.

Decoro do governante é outra formalidade essencial. Trump, Johnson e Bolsonaro não respeitam o decoro do cargo e ferem a sua legitimidade ao adotarem atitudes indecorosas. A democracia depende, portanto, além da força das instituições, da personalidade do governante. Uma personalidade autoritária na chefia de um governo democrático é uma contradição que tem consequências sempre. Governos tendem a incorporar o espírito de seus chefes. Não existe a possibilidade de uma democracia autocrática. Mais que um oxímoro, é uma anomalia insustentável. Vence a personalidade autoritária e o regime desliza para o autoritarismo. Ou vence a democracia e o autocrata é removido do governo. A democracia tem regras para livrar-se legal e legitimamente desse tipo de governante.

Sérgio Abranches é cientista político.