Valor Econômico: “Política de saúde terá que mudar com volta de velhas doenças”

10/10/2019 | Direitos do povo

Respostas não dependem apenas de estratégias de atenção básica

Publicado no Valor Econômico, no dia 8 de outubro de 2019 | Por Leila Souza Lima e Gabriel Caprioli*

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José Noronha, pesquisador da Fiocruz: embora o sistema vacinal do país seja complexo, há disponíveis medicamentos e meios preventivos contra as doenças — Foto: Luciana Whitaker/Valor

A volta ao cotidiano de doenças erradicadas ou controladas há décadas marca o início de uma nova etapa no direcionamento das políticas de saúde pública, a partir da qual o enfrentamento não dependerá somente das estratégias de atenção básica que demonstraram sucesso, campanhas de vacinação e suprimento de medicamentos. Para especialistas, além da crise fiscal, que espremeu recursos federais e regionais, reduzindo a capacidade de atendimento, há falhas de vigilância, aspectos socioeconômicos, ambientais e migratórios que agora impactam a área nos campos da infectologia e das doenças transmissíveis. Todos esses fatores exigem uma abordagem mais proativa do sistema de saúde.

Sarampo, sífilis e raiva humana são algumas das patologias que são de novo assunto no dia a dia das pessoas, sem discriminação de idade ou classe social. Pelo mais recente balanço do Ministério da Saúde sobre sarampo, foram confirmados 5.404 casos em 19 unidades da federação, dos quais 97% concentrados em São Paulo (ver tabela ao lado). Os dados se referem ao período de 7 de julho a 28 de setembro. Houve seis mortes no país - cinco em São Paulo e uma em Pernambuco. Para combater a epidemia, uma nova campanha de vacinação começou ontem.

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O retorno da doença foi impulsionado pela entrada no país de casos estrangeiros e pela baixa cobertura vacinal. Esse quadro fez o Brasil perder neste ano o certificado de país livre da doença, entregue pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas/OMS), em 2016. Para a perda desse reconhecimento, é preciso haver transmissão sustentada - ou seja, incidência de um mesmo surto por mais de 12 meses. A disseminação de informações falsas sobre a credibilidade da imunização oferecida pelos serviços públicos também contribuiu para esse retrocesso.

Pesquisador do “Brasil Saúde Amanhã” - projeto da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) voltado para a prospecção estratégica, identificação de riscos e ameaças -, José Noronha diz que nunca havia imaginado que o país viveria um movimento anti-vacina. E, embora considere que o sistema vacinal do país seja complexo do ponto de vista de tecnologia de saúde - o fracionamento das doses que pode levar à descontinuidade na aplicação seria um dos exemplos -, há disponíveis medicamentos e meios preventivos contra as doenças.

Mas ele não responsabiliza a população. “O sarampo é evitado com uma vacina só, a febre amarela também. Teríamos menos problemas com a febre amarela se a vigilância tivesse sido acionada com rapidez. Não era para morrer mais ninguém a essa altura.”

Para Marco Aurélio Sáfadi, professor da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo, a manutenção de 95% da cobertura vacinal é imprescindível para evitar a reintrodução de vírus já controlados no país. Embora a aplicação da tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola) tenha ficado acima de 90% nos últimos três anos - 93% em 2016; 91,3% em 2017; 90,5% em 2018 -, foi insuficiente para conter o surto na região Norte, em 2018, e em São Paulo, neste ano. “É um percentual rígido. Você tem que ter 95% da população vacinada, principalmente de forma homogênea. Se houver, por exemplo, cidades em que a cobertura só alcança 10%, você cria bolsões de suscetibilidade”, diz ele, também presidente do Departamento de Epidemiologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).

O professor destaca que, assim como o retorno de doenças controladas se deve a vários fatores, as causas da baixa cobertura vacinal também são diversas. Além da desinformação e disseminação de notícias falsas, assim como a rejeição à proteção baseada em convicções religiosas, há uma dificuldade estrutural e logística no acesso da população ao sistema de saúde. “A gente tem que reconhecer que há falhas que dificultam o acesso, como o horário reduzido de atendimento em postos e desabastecimento pontual de algumas vacinas”.

Para ele, no entanto, a solução não passaria por ações punitivas ou repressoras - como obrigar os responsáveis legais a vacinar menores por via judicial. “Isso piora e afasta mais ainda os que desconfiam da verdade. O caminho para contornar é a boa informação e o reconhecimento das nossas limitações. Não adianta querermos dizer que as vacinas são 100% eficazes ou 100% isentas de risco, mas precisamos difundir que a contribuição das vacinas na proteção da população é inquestionável. Tem que melhorar o acesso à informação.”

Um dos exemplos que Sáfadi dá é a discussão sobre casos de sarampo identificados em jovens adultos imunizados na infância. “O vírus não circulou por muitos anos. Aqueles que têm entre 20 e 40 anos foram vacinados, mas passaram a juventude sem ter contato com o vírus, o que impediu que desenvolvessem resposta imunológica melhor. É preciso lembrar que esses casos em eventuais vacinados são mais leves e menos sujeitos à hospitalização e à morte. A vacina pode até ‘falhar’ no sentido de impedir a doença, mas melhora muito a resposta ao vírus.”

O Ministério da Saúde informou ao Valor que a única doença já considerada erradicada do país é a varíola. “A erradicação acontece quando não somente foram eliminados os casos, mas também as causas da doença, em especial, o agente. É importante destacar que a erradicação de uma doença adquire seu real significado quando alcançada numa escala mundial”, afirmou a pasta. “As vacinas foram responsáveis pela erradicação da varíola no mundo, em 1980, pela interrupção da transmissão da poliomielite nas Américas em 1994, sendo que o último caso de infecção pelo poliovírus selvagem no Brasil ocorreu em 1989, e pela eliminação da rubéola e síndrome da rubéola congênita nas Américas, reconhecida pela Opas em 2015”, ressaltou o ministério, em nota.

Das doenças eliminadas, a única que voltou a registrar casos, recentemente, foi o sarampo, de acordo com a pasta. “Com a entrada de novos casos da doença no país, o Ministério da Saúde tem reforçado as ações de combate e prevenção da doença nos Estados que estão com circulação ativa do vírus do sarampo. Entre as ações de combate, está a vacinação, em todo o país, de todas as crianças de seis meses a menores de 1 ano. Essa medida preventiva deve alcançar 1,4 milhão de crianças, que não receberam a dose extra, chamada de ‘dose zero’, além das previstas no Calendário Nacional de Vacinação, aos 12 e 15 meses.”

Em São Paulo, após a adesão de pouco mais de 40% dos jovens de 15 a 29 anos à campanha de vacinação contra o sarampo terminada em agosto, a Secretaria de Saúde decidiu intensificar as chamadas ações de “bloqueio” e mapear as cadeias de transmissão, segundo a diretora técnica do Centro de Vigilância Epidemiológica do Estado, Helena Sato. Ela reconhece que a cobertura de pouco mais de 40% para o público-alvo da campanha foi baixa. E também atribui a ausência dos jovens aos movimentos anti-vacinas e à disseminação de notícias falsas.

Os problemas, contudo, vão bem além da vacinação, alertam os especialistas. Pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), Christovam Barcellos destaca aspecto que, na rota da doença, liga os pontos entre o Norte do país, onde ficam as localidades mais pobres, e o Sudeste, que tem o rico Estado de São Paulo.

“São regiões que têm em comum intensa ou repentina mobilidade humana, onde há cada vez mais pessoas circulando e entrada de não locais ou estrangeiros, muitos deles sem proteção vacinal. Isso é explosivo, quando eles chegam a localidades com baixo nível de imunização”, explica Barcellos.

Segundo ele, o aumento desses deslocamentos - devido ao turismo, ao movimento pendular entre municípios, à migração de concidadãos ou estrangeiros - e a favelização crescente em razão de crises econômicas são o mais novo desafio ao Sistema Único de Saúde (SUS). É nesse contexto que surgem comunidades na clandestinidade, caso de imigrantes ilegais ou grupos isolados pelo extremo empobrecimento, como moradores de rua ou de áreas inóspitas - e quase sempre à margem dos serviços de saúde e das ações de vigilância. Grandes capitais e cidades situadas em fronteiras com países que enfrentam crises humanitárias estão entre as regiões mais vulneráveis a surtos de doenças que podem eclodir a partir desses grupos. “De repente uma concentração de pessoas maior ou menor num bairro ou localidade vira um foco de disseminação de vírus. Nesse momento é que se apresentam as falhas de monitoramento, e isso é um novo desafio que está se impondo”, diz.

O escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) informou que o Brasil é destino de refugiados do mundo inteiro, com intenso fluxo de venezuelanos neste momento por causa da crise política no país vizinho. E que qualquer estrangeiro que entra no país como refugiado pode solicitar o reconhecimento dessa condição, passando a contar com atendimento de saúde.

“Registramos uma média de 500 a 800 entradas de venezuelanos por dia pela cidade de Pacaraima, Roraima, onde a Operação Acolhida e o Acnur mantêm o Centro de Registro e Triagem. Ali, todos os venezuelanos que querem ficar no Brasil recebem documentação provisória, o que lhes permite trabalhar, estudar e ter acesso aos serviços básicos do governo. Junto à documentação, os venezuelanos passam por avaliação médica e são imunizados pelo Exército. O mesmo vale para o Programa de Interiorização: a vacinação é obrigatória para aqueles venezuelanos que serão realocados para outras cidades”, diz a entidade.

Mesmo com o país contando com o trabalho de organizações humanitárias, José Noronha, da Fiocruz, avalia que falhas de vigilância são um problema global, e que é preciso haver coordenação melhor entre os países neste campo. Ele cita as dez ameaças à saúde global listadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) no início do ano como pontos que deveriam motivar ações preventivas no Brasil: poluição do ar e mudanças climáticas; doenças crônicas não transmissíveis; pandemia de influenza; cenários de fragilidade e vulnerabilidade; resistência antimicrobiana; ebola; atenção primária; vacinação; dengue e HIV.

Já ao mapear os males que nos últimos anos se tornaram, em menor ou maior grau, problema para brasileiros, Noronha os separa em quatro grupos: doenças antes controladas, para as quais há meios de combate, e que por razões diversas voltaram; moléstias transmitidas por mosquitos que viraram epidemias por arboviroses - aqui incluídas algumas das listadas pela OMS e males causados até por vírus ainda não urbanizados; enfermidades que surgem com a pobreza e falta de informação; e as grandes ameaças globais, como influenza.

O segundo grupo de doenças, com transmissão via artrópode (carrapatos ou mosquitos), é o mais complexo, diz ele. “Não têm vacina, são perigosas, globais. A solução é controlar o mosquito, mas aí tem as questões ambientais. Então não há ainda um horizonte de saída para esses casos”. Os tratamentos são apenas sintomáticos - caso da dengue, chikungunya e zika.

Sáfadi, da Santa Casa, pondera que a mobilidade maior de pessoas pelo mundo facilita a circulação dos vírus, mas volta a reforçar que a cobertura vacinal acima de 95% poderia evitar surtos como o do sarampo. “No caso de São Paulo, o vírus veio com famílias que foram para Europa, para Israel, e o trouxeram. É um pouco fruto da globalização, mas também resultado da baixa cobertura vacinal.”

Além do sarampo, outras doenças podem se disseminar entre a população brasileira seguindo a mesma trilha, segundo ele. “Há a difteria, por exemplo. Houve um recrudescimento na Venezuela, que deixou de vacinar sua população há anos e teve um surto com centenas de mortos por difteria. Está absolutamente controlada no Brasil, mas se tiver reintrodução, corremos risco. Outro perigo vem da poliomelite. Não tivemos novos registros nas Américas, mas países como Afeganistão e Paquistão reportam casos de pólio selvagem. Se não houver reforço na imunização, corremos risco”.

Barcellos, da Fiocruz, manifesta preocupação também com a sífilis. “É um problema mais ou menos parecido com o sarampo, pois existe solução. É tratado com antibiótico. Mas é preciso haver diagnóstico oportuno. E temos essa questão da mobilidade, gente circulando cada vez mais. No Brasil, os casos aumentaram 48% de 2016 para 2017, segundo o Datasus”.

O cientista considera a ainda alta incidência da doença uma falha no sistema de saúde, já que há casos de sífilis de natureza congênita. “Acontecer isso hoje é uma vergonha, porque a gestante não foi diagnosticada, tratada e transmitiu para o bebê. Isso demonstra uma falha enorme na atenção básica”.

Em relação às restrições orçamentárias no país, Sáfadi afirma que as brechas na vigilância epidemiológica não são exclusividade do governo atual e que é preciso defender os gastos em saúde e educação como prioridades absolutas. “As gestões anteriores erraram também. Mas a população precisa deixar claro aos governantes que é possível apertar de todos os lados. Saúde e educação, porém, precisam ter um mínimo de aportes, pois o corte nessas áreas vai piorar muito o quadro de assistência.” 

*Leila Souza Lima e Gabriel Caprioli são jornalistas do Valor Econômico