Vladimir Safatle: “Bolsonaro se vê à frente de uma revolução em marcha”

14/05/2020 | Política

Para o filósofo Vladimir Safatle, esquerda brasileira deveria ter a mesma coragem de ser antissistema

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Apoiadores de Jair Bolsonaro saíram recentemente às ruas em alguns cantos do País para protestar contra as quarentenas anticoronavírus, sem dar bola para o risco de se contaminarem (o vírus adora uma aglomeração). Uma prova de fanatismo pelo ídolo presidente.

“Ele começou com 30% de apoiadores e vai terminar com 30% de camisas negras”, diz o filósofo Vladimir Safatle, professor na USP. “Camisas negras” foi como ficaram conhecidas as milícias fascistas de Benito Mussolini na Itália dos anos 1920 e 1930. “O que o Bolsonaro está fazendo é reconstruindo a identificação ideológica dessa minoria”, prossegue o acadêmico.

Com produção intelectual que inclui psicanálise, Safatle entende que a pandemia expõe o êxito do bolsonarismo em “desrecalcar” características violentas de parte da população e promover “uma transformação dos afetos na vida social brasileira”. O que emerge, teoriza, “é a expressão máxima da ausência absoluta de solidariedade pelos mais vulneráveis, a ponto de se zombar daqueles que estão morrendo”.

Impulso violento e desprezo pelo outro não são novidades em um país marcado por três séculos de escravidão. A novidade é essa brutalidade servir à construção de uma inédita (no Brasil) direita de base popular, segundo Safatle. Uma base que o ex-capitão usa com propósitos revolucionários. Revolução conservadora, ressalta o professor, mas ainda assim, revolução.

Para o acadêmico, Bolsonaro acerta ao dizer que o Brasil é ingovernável. Assumidamente de esquerda, Safatle vê o presidente politicamente mais forte do que o campo progressista gosta de admitir e a linha de frente contra ele ser ocupada pela direita tradicional. É o que explica na entrevista a seguir, concedida antes da demissão de Sérgio Moro.

CartaCapital: Qual é o plano do Bolsonaro? Você diz que ele tem um e a esquerda não.

Vladimir Safatle: Fazer uma transformação radical na estrutura social e cultural do País. É uma revolução cultural, como o nazismo foi uma revolução cultural. Aquela frase atribuída ao (ministro da propaganda da Alemanha nazista Joseph) Goebbels “quando eu ouço a palavra ‘cultura’, eu tiro meu revólver”, é completamente falsa, Goebbels nunca falou isso. Os nazistas se viam como uma espécie de luminares da transformação cultural da Alemanha. Eles justificavam a eugenia utilizando Sêneca (advogado e intelectual do Império Romano), diziam que (o filósofo grego) Platão era a favor de uma sociedade racialmente dividida. Esse era o horizonte perseguido pelos nazistas. Não era só um processo capitalista, era transformação cultural do país. É isso que Bolsonaro quer. A gente não leva a sério o que ele é. O seu guru (Olavo de Carvalho) é um sujeito que se diz filósofo e coloca a batalha cultural como um elemento central. Essa batalha tem esse horizonte: transformar as mentes, a maneira com que as relações no interior da sociedade brasileira vão se dar.

CC: É incrível, mas isso é Gramsci, não? Batalha cultural conforme defendido por um filósofo marxista.

VS: De fato. Mas Gramsci, quando escreve isso, está pensando na classe trabalhadora. O que o Bolsonaro quer é uma contra-revolução preventiva.

CC: Como o golpe de 1964, que os militares chamam de “revolução” e que foi preventivo no sentido de que se justificou como necessário para impedir uma revolução socialista.

VS: Mas o golpe de 64 não tinha as características que ele (o plano de Bolsonaro) tem agora. Era muito mais um arranjo das oligarquias que viam seu poder ameaçado. Agora é diferente. Veja que coisa absolutamente impressionante: você tem uma transformação dos afetos na vida social brasileira. No momento em que temos uma pandemia e que se podia esperar um afeto de solidariedade genérica, por gente que nem sei quem é, que não faz parte do meu grupo, não tem a minha identidade, a minha história, vem uma força por fora transformando isso em outra coisa. O que emerge é a expressão máxima da ausência absoluta de solidariedade pelos mais vulneráveis, a ponto de se zombar daqueles que estão morrendo. Quando você sai com um caixão (como fizeram, em protesto contra as quarentenas, militantes bolsonaristas na avenida) Paulista, você está zombando das três mil pessoas que morreram.

CC: É um cada um por si, é uma barbárie.

VS: É mais do isso. É um ritual do auto-sacrifício. As pessoas que estão na rua estão falando: “Olha, por esse ideal, estou disposto a me colocar em uma situação de risco”. Não faz o menor sentido imaginar que essas pessoas não têm consciência do risco. Elas teriam de ser lobotomizadas para chegar a esse ponto.

CC: De uns tempos para cá, Bolsonaro passou a dizer que está com o povo, que governa para o povo, que o povo que manda. Ele em usado mais a palavra “povo”. Por que, na sua opinião?

VS: Ele sabe que é muito difícil ele cair, se tiver 30% de apoiadores aguerridos (as pesquisas dão cerca de 35% de aprovação ao governo). Sabe que pode perder a maioria no Congresso, mas (não vai ser derrubado) com 30% de apoiadores que, mesmo em uma pandemia, saem na rua para defendê-lo, gritar o seu nome e, mais do que isso, dispostos, literalmente, a jogar roleta-russa. Esse é um dado completamente novo. O Brasil sempre foi uma necropolítica (conceito criado pelo filósofo camaronês Achilles Mbembe segundo o qual um governante tem o poder, com suas escolhas, de decidir quem morre e quem vive), você sempre teve o Estado como operador da morte e do desaparecimento das classes vulneráveis, sempre foi gestor de uma guerra civil não declarada. Só que agora você tem um dado completamente diferente, novo: não é só uma máquina necropolítica, é uma máquina suicidária. Quando você faz manifestação com caixão e buzinaço na frente de hospital, não é só desprezar a morte do outro ou zombar da morte do outro. Essa pessoas aceitaram se colocar em risco. Tem gente que diz: “Ah, mas essas pessoas não sabem a gravidade (do coronavírus), o risco que correm”. Isso é pueril. A gente acha que quem não pensa como a gente não pensa por ser estúpido, por não conseguir entender do mesmo jeito que a gente. Claro que essas pessoas sabem do risco, claro que no fundo elas têm essa sensação de que talvez isso (ir às ruas por Bolsonaro mesmo com um vírus à solta) possa afetá-las, é óbvio. A questão é entender como se constitui esse desejo (de agir por Bolsonaro mesmo no risco), um desejo de auto-sacrifício.

CC: De uns tempos para cá, Bolsonaro passou a dizer que está com o povo, que governa para o povo, que o povo que manda. Ele em usado mais a palavra “povo”. Por que, na sua opinião?

VS: Ele sabe que é muito difícil ele cair, se tiver 30% de apoiadores aguerridos (as pesquisas dão cerca de 35% de aprovação ao governo). Sabe que pode perder a maioria no Congresso, mas (não vai ser derrubado) com 30% de apoiadores que, mesmo em uma pandemia, saem na rua para defendê-lo, gritar o seu nome e, mais do que isso, dispostos, literalmente, a jogar roleta-russa. Esse é um dado completamente novo. O Brasil sempre foi uma necropolítica (conceito criado pelo filósofo camaronês Achilles Mbembe segundo o qual um governante tem o poder, com suas escolhas, de decidir quem morre e quem vive), você sempre teve o Estado como operador da morte e do desaparecimento das classes vulneráveis, sempre foi gestor de uma guerra civil não declarada. Só que agora você tem um dado completamente diferente, novo: não é só uma máquina necropolítica, é uma máquina suicidária. Quando você faz manifestação com caixão e buzinaço na frente de hospital, não é só desprezar a morte do outro ou zombar da morte do outro. Essa pessoas aceitaram se colocar em risco. Tem gente que diz: “Ah, mas essas pessoas não sabem a gravidade (do coronavírus), o risco que correm”. Isso é pueril. A gente acha que quem não pensa como a gente não pensa por ser estúpido, por não conseguir entender do mesmo jeito que a gente. Claro que essas pessoas sabem do risco, claro que no fundo elas têm essa sensação de que talvez isso (ir às ruas por Bolsonaro mesmo com um vírus à solta) possa afetá-las, é óbvio. A questão é entender como se constitui esse desejo (de agir por Bolsonaro mesmo no risco), um desejo de auto-sacrifício.

CC: Como é que, até por razões históricas, chegamos ao ponto de um político como Bolsonaro ser tratado como ídolo e ter, de ter apoiadores fanáticos?

VS: O país sempre teve uma massa conservadora. Havia esses 30% mesmo quando o Lula foi eleito por 60 e pouco a 40, 63 a 37, algo muito próximo disso (foi 61% a 39% nas duas vitórias, em 2002 e 2006). Um dado histórico: a Ação Integralista (movimento brasileiro de ultradireita surgido e desaparecido nos anos 1930) tinha mais de um milhão de membros. Esses fascismo brasileiro dos anos 1930 se transformou depois em apoio à ditadura (militar de 1964 a 1985) e chegou à Nova República (período posterior à ditadura militar encerrada em 1985 e à Constituição de 1988). A diferença é que na Nova República (antes de Bolsonaro) você tinha uma direita que era oligárquica, a direita clássica brasileira. O PSDB era oligárquico, era o PRP (Partido Republicano Paulista, que nasceu no tempo do Império e sumiu nos anos 1930) dos anos 90 e 2000. O que acontece com Bolsonaro é que ele conseguiu criar um partido popular, uma direita popular. Criou a partir do momento em que desrecalca todos esses traços mais brutais e violentos, temas presentes na sociedade brasileira. Esses os traços podiam estar visíveis mas eram geograficamente deslocados. É um tipo de violência que você encontra no tratamento das populações da periferia, no tratamento das populações negras… Agora essa violência vem para o centro e se espalha contra todos, chega nesse nível que transforma desejo de ruptura em ritual auto-sacrificial.

CC: Por que você diz que o presidente Bolsonaro acerta ao falar que o Brasil é ingovernável?

VS: Ele compreendeu que a Nova República acabou. Os pactos de governabilidade que estavam na Nova República, os acordos, as coalizações, não funcionam mais. O horizonte constitucional da Nova República também não consegue mais legislar em cima desses acordos. Levando em conta isso, ele (Bolsonaro) simplesmente percebeu que a sua função no governo seria mobilizar de forma permanente um setor da população que procura uma saída fora dessa institucionalidade vigente e que está disposto a toda forma de ruptura.

CC: Em termos menos abstratos, o que é essa ingovernabilidade? O que é isso no dia a dia?

VS: A Nova República, quando foi constituída, partia do pressuposto de que você tinha várias forças atuando no interior da sociedade brasileira, por exemplo, as forças ligadas à defesa dos trabalhadores e dos empresários, e que essas forças conseguiriam chegar a um tipo de acordo. A Nova República travou porque você não podia nem destruir completamente a base de direitos trabalhistas nem avançar muito na ampliação dessa base. É uma espécie de paralisia, em que você não degrada tudo mas também não consegue avançar. Foi por isso que explodiu, porque esse era um sistema de travas. Esse sistema de travas nãoconseguiu mais dar conta da frustração da população em relação a suas expectativas de transformação, de ruptura. O que fez o Bolsonaro? Constituiu uma espécie de dinâmica revolucionária conservadora. Deu a esse desejo de ruptura uma forma, uma forma revolucionária, no sentido forte do termo, só que conservadora.

CC: Em que momento o sistema explodiu?

VS: A partir de 2013 (ano em que houve uma onda de manifestações de rua). De 2013 pra cá, foi uma longa e lenta degradação institucional do País. 2013 explicitou que havia um setor majoritário da população que já não esperava mais nada desse horizonte institucional. Não houve por parte da esquerda uma capacidade de dar a esses setores da população uma alternativa de esquerda. A esquerda virou o grande partido legalista do País, enquanto a direita se descolou do centro e foi se idealizando pela extrema-direita, como ruptura.

CC: O espaço antiestablishment está totalmente ocupado pelo bolsonarismo.

VS: Exatamente isso. O espaço anti-institucional está sendo totalmente ocupado por ele. Ele é a força de tensionamento do espaço público brasileiro, é a única força política hoje que faz isso.

CC: O que a esquerda pode fazer nessa situação? Você escreveu recentemente um artigo que praticamente diz que a esquerda morreu no Brasil.

VS: Eu diria a mesma coisa: a esquerda não pode fazer nada porque ela morreu. Depois que escrevi, há uns dois meses, recebi muita crítica, mas acho que tudo o que vimos no começo de 2020 e nesses últimos meses demonstrou que estava certa a análise. A esquerda não consegue nem mais ser a líder da oposição no país. A oposição não é feita pela esquerda, é feita pela direita: é direita contra extrema-direita. As maiores lideranças de oposição no Brasil são (o governador tucano de São Paulo João) Doria e (o governador do Rio pelo PSC Wilson) Witzel, não é a esquerda. É impossível dizer o contrário. A esquerda procura esconder o medo que sente diante de sua própria impotência. Usa o argumento de que “Ah, mas veja, o Bolsonaro está querendo mesmo (o impeachment, para) mobilizar o seu eleitorado”. Isso chega às raias do ridículo, porque ele não precisa do impeachment para mobilizar o seu eleitorado, ele já colocou diante do seu eleitorado a história de que está sendo perseguido.

CC: Essa atitude encaixa-se no projeto revolucionário antiestablishment dele.

VS: Exato. Ele só não tentou isso (a mobilização dos apoiadores com o discurso de perseguição) há um mês, porque houve o covid. Essa marcha (de bolsonaristas radicais) de 15 de março foi esvaziada por causa da pandemia, mas em momento algum o Bolsonaro voltou atrás (nos seus planos). Ele tenta agora se servir da pandemia para colocar em operação o seu projeto. Parecia que a pandemia tinha instabilizado o seu horizonte (de governo), mas era falso. Simplesmente foi um recuo estratégico, até o momento em que ele percebeu que conseguia mobilizar seu eleitorado mesmo durante a pandemia. Você ouve toda semana alguém dizendo: “Acabou agora para o Bolsonaro, ele morreu, agora não dá mais, virou uma rainha da Inglaterra”. É o que os ingleses chamam de wishful thinking. As pessoas tomam o seu desejo por realidade.

CC: Ele não recua, então, faz pausas, é isso?

VS: Isso. Ele tem claramente um projeto revolucionário para o País. Ele se vê diante de uma revolução em marcha, não vai parar por nada.

CC: As Forças Armadas cumprem um papel importante nesse projeto revolucionário?

VS: Sim, até porque ninguém sabe muito claramente qual é a posição das Forças Armadas. Levando em conta a história das Forças Armadas brasileiras, mesmo que você tenha setores que são muito reticentes (a Bolsonaro e seu projeto), eles vão ser tragados, se você tiver uma dinâmica hegemônica. Na ditadura militar foi assim: você tinha setores que queriam a volta do poder civil rapidamente e eles foram ultrapassados pelos setores mais audazes da ditadura, que conseguiram implementá-la por vinte anos. Essa coisa de contar com uma espécie de compreensão das Forças Armadas (para controlar Bolsonaro) é uma grande ilusão. Elas vão estar com Bolsonaro se ele demonstrar força, e ele sabe quando demonstrar força, porque sabe que tem de 25% a 30% da população ao lado. É uma minoria, é verdade, mas está articulada, enquanto a maioria está desarticulada. E eu diria mais: essa minoria começou como uma minoria de apoio ao Bolsonaro e vai terminar como uma minoria de fiéis. O que o Bolsonaro está fazendo é reconstruindo a identificação ideológica dessa minoria. Começou com 30% de apoiadores e vai terminar com 30% de camisas negras (como ficaram conhecidas as milícias fascistas de Benito Mussolini na Itália dos anos 1920 e 1930).

CC: Há interesses econômicos também nesse projeto revolucionário, não? O neoliberalismo adotado como política econômica do governo Bolsonaro começou autoritário, no Chile.

VS: Se você for à origem do neoliberalismo, nos anos 30, aos liberais alemães, russos, vai descobrir um debate forte com o nazismo. O debate entre o (jurista e filósofo colaborador do nazismo Carl) Schmitt e o (economista austríaco ulltraliberal Friedrch) Hayek é real. Hayek nunca defendeu uma democracia plena, defendia uma democracia limitada. Faz a defesa do (general-ditador chileno no poder de 1973 a 1990 Augusto) Pinochet. As entrevistas que ele deu ao (jornal chileno) El Mercurio nos anos 80 estão todas aí (Hayek disse que preferia uma ditadura se ela promovesse liberalismo econômico, a uma democracia que não tivesse liberalismo na economia). O neoliberalismo sempre soube que precisaria despolitizar a sociedade, impedir que a sociedade pudesse funcionar na sua dinâmica conflitual, e aí você precisa da força arbitrária do Estado. Só que você tem uma outra vertente (não autoritária), com (a primeira ministra britânica no poder de 1979 a 1990 Margareth) Tatcher e (o presidente americano de 1980 a 1988 Ronald) Reagan, que escamoteia isso por um tempo. A vertente da qual o Brasil faz parte, a chilena, começou assim: a primeira imagem do neoliberalismo é o palácio (presidencial) La Moneda do Chile sacrificado (pelo ataque militar contra o socialista Salvador Allende, cuja deposição deu início à ditadura Pinochet). Esse foi o primeiro momento do neoliberalismo. A partir daí os neoliberais puderam fazer do Chile um grande laboratório.

CC: O ministro da Economia, Paulo Guedes, é neoliberal, tem o Chile como inspiração e esteve lá por um tempo na ditadura do Pinochet.

VS. Eu diria que isso demonstra três coisas. A primeira delas: esse programa econômico (de Guedes) é politicamente autoritário. Não é que tem um programa econômico de um lado e uma política destemperada (de Bolsonaro) por outro. A segunda coisa é que o empresariado brasileiro é fascista. São pessoas que na ditadura militar apoiavam crimes contra a humanidade. Quem é que financiou a Operação Bandeirantes (que caçou adversários do regime)? Está lá o Itaú, está lá o Bradesco, está lá a Camargo Correa, está a Fiesp. Eles sabem que, para conseguir lucros estratosféricos, não é que precisam fazer vista grossa para a violência: eles precisam dessa violência. Terceiro ponto: isso funciona no Brasil porque o Brasil se constituiu como sociedade a partir da experiência escravocrata, que é uma experiência que define dois destinos para os sujeitos que habitam essa terra: um grupo vai ser reconhecido como pessoa (os brancos livres), outro vai ser reconhecido como coisa (os negros cativos). Quem é “coisa” não sente nada, é só um número. Isso sempre aconteceu no Brasil. Só que agora (no bolsonarismo), a condição de “coisa” foi generalizada. Você tem um presidente que, ao invés de fazer um jogo hobbesiano (referência a Thomas Hobbes, filósofo e político inglês do século 17) clássico, da proteção, da segurança, fala “olha, vai morrer gente”.

CC: Aonde isso tudo vai terminar, na sua opinião?

VS: Você tem dois cenários possíveis. Ou Bolsonaro realiza seu projeto revolucionário ou não realiza. Ele pode conseguir realizar. Ele anda num terreno sem fricção, porque a maioria não está organizada. Nós somos a maioria, mas nós não somos organizados. Ele pode não conseguir, mas para ele não conseguir, precisa de uma organização da maioria, e isso hoje não existe. Não há mais ator político na oposição. Se você levar em conta o que se chama esquerda, a esquerda não existe mais no Brasil, a gente fica na dependência da direita se organizar.

CC: Acredita que deveria haver união entre esquerda e centro-direita contra o presidente?

VS: Não. De todas as ideias, acho essa a mais absurda. Ela repete todo o sistema de capitulação da esquerda nacional no período da Nova República. A esquerda nunca precisou da centro-direita para agir. No impeachment do Collor, a esquerda articulou e depois setores da centro-direita, vendo que era irreversível, apoiaram. Essa situação (de a esquerda unir-se à centro-direita) seria mais ou menos dizer o seguinte: “A esquerda não tem força para nada, vai ser só uma alavanca para dar força para a centro-direita fazer o processo e monopolizar o resultado”. Se for para fazer isso, sugiro que todo mundo (de esquerda) fique em casa e esqueça, e deixe que eles se acertem. Se a centro-direita tomar o poder, vai fazer 70% do que Bolsonaro quer fazer, só vai deixar de fazer 30%. Você vai ter violência, só que um pouco diferente. Esse tipo de acordo é assinar a capitulação final da esquerda brasileira. A esquerda precisava de outra coisa: afirmar claramente o seu nome, se colocar como uma força institucional em outro polo. Ela tem o seu eleitorado natural, outros 30% do país. Só que esses 30% estão com a garganta travada, não conseguem nem gritar, porque não tem um nome. Você teve 15 dias praticamente de panelaço ininterrupto, espontâneo, e o que se faz com isso? Nada.